CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 OS DEFEITOS DOS NOSSOS NETOS
Publicado em: 01/11/2016
Dizem que o amor é cego, e é um bocadinho. Felizmente. Porque assim cada um de nós pode ser apaixonadamente amado como ser único e especial, que é tudo aquilo que queremos na vida. Ser o melhor do mundo ainda por cima para quem mais se ama, decididamente a natureza não dorme em serviço. E, supostamente, o amor dos avós seria ainda mais cego do que o dos pais — alguma vantagem teria de existir na hipermetropia, que impede de ver com nitidez o que nos está próximo, e na passagem do tempo, que ensina que há guerras que não vale a pena sequer iniciar, muito menos ganhar, até porque só os bons exemplos educam. Por isso sim, o amor dos avós talvez tenha menos umas dioptrias.

Mas mesmo as piores cataratas não os impedem de ver, por vezes com perplexidade e preocupação, comportamentos ou “feitios” que desconcertam, aparentes falhas de caráter que desiludem, e os deixam sem saber bem o que fazer a seguir. Como é que um netinho tão doce conseguiu mentir com aquele à vontade, o que leva uma criança afável e generosa a tratar tão agressivamente um amigo, transmutando-se de um sereno Dr. Jeckyll num assustador Mr. Hyde? Ou como é capaz de ser tão cruel com os pais (que, afinal, são os nossos queridos filhos), ferindo-os nos pontos mais frágeis, chantageando-os com tanto descaramento?

E se é os avós que magoam, como fingir que não se vê, como não ter medo de que alguma coisa na relação quebre? Retaliar, amuar ou agir como se nada se tivesse passado? Se a tentação é aceitar um “desculpe”, na ânsia de que lhes apaziguar o coração, como não deixar que ensombre uma relação dourada, sobretudo quando no fundo da alma não se está preparado para o conceder? Ou se teme que a falta de consequências, reforce o erro?
Ajuda muito quando os pais ajudam a desbloquear a situação. Quando se levantam pelos avós, mas também quando permitem que os avós aprendam com eles, partilhando o que sabem sobre a melhor maneira de lidar com aquela criança, os seus pontos fortes e sensíveis, e encorajando-nos a empenharmo-nos na reconciliação, aceitando que é sempre um trabalho de parte a parte.

Quando é assim, os avós sentem o peito inchar de orgulho por verem os seus filhos tornados pais mais sábios do que eles próprios foram, confiam que os netos estão bem entregues, e aceitam que os confrontos ajudam-nos a todos a crescer.
Tudo se torna muito mais complicado, no entanto, quando o “ataque” de um neto parece contar com a complacência dos pais, como se não fossem mais do que seus porta-vozes, ou se aquilo que angustia na personalidade de um neto não é, aos nossos olhos, outra coisa senão o resultado de uma forma de educar com que não conseguimos concordar. O que se faz quando chamar um neto à pedra é, no fundo, chamar à barra os seus pais, perguntava-me há tempos uma avó.
Pois é, ninguém disse que a vida era fácil, muito menos as relações em que tudo se joga e de que dependemos tanto, mas não há outra receita senão a ciência que nos vai dando o amor incondicional por todos eles. E que passa, também, pela capacidade de nos pormos a nós mesmos em causa.