CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 CARTAS DE MÃE E FILHA EM TEMPOS DE QUARENTENA: DIA 1
Publicado em: 20/03/2020
Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação infantil. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidade, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, separadas pela quarentena, e não só.


Minha querida filha,

Aqui, em quarentena, sinto-me dividida. Há um lado de mim que pensa “Que pinta! Finalmente o Estado apoia as mães a ficarem em casa com os filhos”, mesmo que seja por uma razão tão complicada e angustiante como esta. E ponho-me a pensar no alívio que é para tantas mães não terem de arrastar os filhos da cama de manhã, nem de fazer a lancheira, desobrigadas dos transportes públicos, e de chegarem a casa exaustas, com ainda tudo por fazer. Imagino piqueniques, jogos de charadas e bolos feitos entre cantigas, sem TPC, nem “Vai estudar para o teste”.

Depois entro em pânico, quantos dias disto, desculpem?

Ana, fecho os olhos e imagino birras. As birras dos filhos, claro, com os olhos quadrados do formato do ecrã do telemóvel ou da televisão, mas sobretudo as birras das mães. Lembras-te que íamos escrever um livro sobre isto? Acho que tudo isto é um sinal de que devemos começar, já! Cartas de uma mãe/avó para uma filha/mãe, sobre os Dias de Mães que não são perfeitas, nem na verdade, o querem ser.

Atiro a matar. Tenho muito mais medo das birras do que tu. Às vezes, para dizer a verdade, enerva-me a aparente passividade com que os pais aceitam as birras dos filhos. E, já que estamos em plena crise covid-19, e que quase pertenço ao grupo de risco, encontrei a coragem de te perguntar: Achas mesmo que um puxão de orelhas não resolvia muitas dessas birras?

Se sobreviveste a um dia com os quatro, responde-me. Se não, interpretarei o teu silêncio como sinal que adormeceste a deitar um deles, e fica para
amanhã.

Pus todos os miúdos à frente de um dispositivo electrónico, por isso, em princípio, tenho pelo menos um episódio do Bob, o Construtor para conseguir escrever-lhe.

Em relação a ter mais medo das birras do que eu... Bem, já dizem os especialistas: a melhor forma de combater uma fobia é expormo-nos a ela. Quanto mais vivermos a experiência – e sobrevivermos – menos intenso é o medo. É natural, por isso, que eu tenha menos medo do que a mãe, já que vivo em constante terapia de exposição! Aliás, se quiser um tratamento intensivo quando passar a quarenta posso deixá-los em sua casa duas semanas. :)

Agora mais a sério, é de facto difícil e por vezes terreno fértil para conflitos esta nova relação de mães-filhas quando já há netos, não é? É um tipo de Adolescência II – daí este ser mesmo um bom timming para recuperarmos o conceito do Diário que lançámos quando eu tinha 15 anos! –, porque, por mais próximas que sejam, por mais que as avós até tenham muito presente o seu percurso como mães, avós e mães vivem em duas realidades diferentes. E isso é bom. Mas torna a comunicação desafiante.

No inicio achava que era uma questão de método parental, geracional até. Que as filhas escolhiam um método diferente do das mães e que isso trazia conflitos, mas hoje em dia parece-me que não é (só) isso. Porque mesmo que uma filha esteja a educar de forma muito parecida com a sua própria infância, a avó, exactamente por ser avó, por não acordar tantas vezes à noite, por já estar mais sábia, por não estar dentro do vórtice do furacão —, vai ter sempre uma perspectiva diferente. De que vão resultar conselhos, que é como quem diz, bitates, que podendo ser incrivelmente espectaculares não são particularmente úteis. Ou, mesmo sendo, não chegam num momento em que estamos com capacidade de os aceitar.

Pensando bem, isto é transversal a toda a relação das mães, e não é uma questão de maturidade. Não podemos mesmo saber o que a outra pessoa está a viver e, se soubéssemos, se sentíssemos o que ela sente, muito provavelmente tomaríamos uma decisão muito parecida. Ou seja, provavelmente uma filha faz o que a mãe faria se estivesse no lugar dela. Por isso é que era mil vezes mais valioso, se as mães conseguissem dizer só qualquer coisa como “Acredito em ti e em que és capaz de tomar a melhor decisão possível para a tua “situação”, com a informação que tens e com as ferramentas de que dispões”.

Em relação às birras e ao puxão de orelhas... que, por vezes, apetece mais do que tudo no mundo? Sim. Que, por vezes, acontece porque perdemos o controlo? Sim. Mas se isso ajuda, ensina ou constrói alguma coisa de útil? Na minha experiência e na minha opinião, não. Acredito mesmo que as crianças – e os adultos – desejam, por natureza, colaborar. Quando não o fazem, acredito que é porque não conseguem. A “birra” é só mesmo a comunicação do “Já não aguento mais, não consigo”. E, já adultos, sentimos exactamente isso na pele, tantas e tantas vezes – mesmo que não cheguemos a bater em alguém. No estado de birra — e a ciência confirma-o – não se aprende nada, a não ser que seja por muito medo (o que não parece que seja o que a maioria dos pais quer). Dar um açoite, gritar ou humilhar nunca ajudou ninguém a acalmar-se, a auto regular-se ou a resolver um problema.

Não é isso que estamos sempre a dizer aos miúdos: “Podes estar chateado mas não é a gritar e a bater que as coisas se resolvem”? Os pedagogos adoram falar de coerência e de exemplo como sendo os pilares da parentalidade, e as birras são um bom pretexto para fazer isso mesmo.

Mas que é difícil, isso é! E calculo que não seja fácil para uma avó ver de fora tanta “comunicação”, sem ficar também com a vontade de intervir de dar uma “chapada” a filhos e netos!

Oiço berros vindos da sala, vou respirar fundo, para tentar pôr em prática tudo isto que lhe acabei de escrever! Depois dou notícias...

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