CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DIA 8: QUARENTENA DOS ALMOÇOS DE DOMINGO
Publicado em: 27/03/2020
Querida Filha,

Esta carta vai à tua censura prévia, se achares que é muito politicamente incorrecta ou que, neste momento, pode ser mal interpretada. Se assim for, deita-a para o lixo e escrevo outra, mas quero falar-te de fins-de-semana e da família alargada. Pronto, vou dizer: quantos filhos, noras e genros não estão a suspirar de alívio por esta quarentena os salvar das romarias de sábado ou de domingo a casa dos respectivos pais? É claro que agora que estão proibidas, haverá quem as romantize, mas mesmo os que gostam destes almoços de família, em que sei te incluis, não se devem importar nada de tirar umas férias da rotina.

Mas, se calhar, o que ninguém diz mesmo, é quantos avós/pais/sogros não estão, secretamente, aliviados. Por umas semanas, e por muitas saudades que tenham dos filhos (e dos netos), ficam eventualmente livres da culpa omnipresente por não dedicarem o seu tempo livre a ajudar os filhos que chegam à sexta-feira absolutamente exaustos. Desta vez, é o Governo que manda, ponto final.

Sabes, acho que já te contei isto, mas há pessoas que me abordam na rua para me dizer que tenho uma visão muito cor-de-rosa do que é ser avó, porque se me “despejassem” as crianças em casa, constantemente, pensaria de outra forma sobre as maravilhas deste “estado”.

Media player poster frame
Sei que as vidas são difíceis, mas há filhos que abusam, como se tomar conta dos netos fosse uma obrigação. E é a coisa mais simples do mundo transformar os avós em mão-de-obra barata, basta jogar (até inconscientemente, concedo) com a ideia de que um conflito pode separá-los dos seus queridos netos.

O pior é que muitas vezes, ressentidos, em lugar de falarem abertamente do problema, e ditarem as regras do seu apoio, mandam “bocas”. Precisamente nos almoços de domingo, o que evidentemente azeda a melhor das sopas.

Pronto, está dito.

Beijinhos cheios de saudades,

Mãe

***

Querida Mãe,

O meu marido está aqui a dizer que, obviamente, nada lhe dá mais prazer do que ir almoçar a sua casa. E eu digo o mesmo sobre a minha sogra, naturalmente. Por isso, passada esta pequena introdução, verdadeiramente verdadeira, posso responder à sua carta, em que vou falar de outras pessoas!

Acho que um pouco de romantismo sobre esses encontros não vai fazer mal a ninguém! Porque, se pensarmos bem, essas oportunidades são mesmo, mesmo valiosas, mais do que aquilo que conseguimos ver quando estamos presos na rotina do dia-a-dia, quando o nosso cérebro, por uma questão de sobrevivência, nos leva a acreditar que nada vai mudar, e que teremos com eles sempre o próximo domingo e o seguinte. Independentemente dos comentários sobre o “cabelo do meu neto”, ou “como ela está muito magrinha”, aquilo que se tece entre avós e netos, filhos e pais, noras e genros, é aquilo que ficará nas nossas memórias (e nas dos netos) para sempre.

Já muito diferente disso, é a sobrecarga que alguns avós sentem no dia-a-dia. Fruto dos poucos apoios aos pais nos seus empregos, dos horários malucos e dos vencimentos curtos, da falta de comparticipação de creches, ou de vagas nos jardins-de-infância, o peso sobre os avós pode ser enorme. E, sim, também há, por vezes, um sentimento egoísta (consciente ou inconsciente) dos filhos, que se auto convencem que a imposição dos netos é, até, “bom para os avós”.

Talvez seja porque vemos sempre os nossos pais apenas como “pais”, e temos dificuldade em imaginá-los como maridos, filhos, irmãos, primos, com uma vida para lá de nós. Ao longo do crescimento, vamos conseguindo (ou devíamos), começar a vê-los noutros papéis.

Talvez alguns filhos fiquem, como crianças, convencidos de que o único propósito dos seus pais, agora que eles próprios cresceram, é o de cuidarem dos seus filhos. Mas, quando é assim, boicotam a coisa mais fantástica da relação entre avós e netos: o facto de não ser uma obrigação. Porque os avós que o são, sem sentirem que a isso são obrigados, não precisam de nenhuma quarentena para os lembrar do prazer que é estar com os netos.

Do lado dos filhos, resolve-se de uma forma simples, começando todas as combinações com os avós por um: “Pode? Se não puder, não faz mal nenhum...”

Do lado dos avós, é mais complicado, porque têm de aprender a gerir a culpa de não estarem sempre lá para os seus filhos, a todo o momento! Mas, suponho, que com treino, aprende-se.

Beijinhos!

Siga no Instagram: https://www.instagram.com/birrasdemae/
Siga no Facebook: https://www.facebook.com/birrasdemae/