CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DIA 49: OS GRITOS TRAUMATIZAM?
Publicado em: 25/05/2020
Ana,

Hoje, saído do nada, revivi uma memória de mim a gritar contigo e com o teu irmão, e de no meio da cena me teres dito, com toda a calma, “A mãe parece um palhaço”. Tinhas 4 anos, e a verdade é que a tua sentença me calou. Por momentos, pelo menos.

Não me orgulho, mas sempre gritei imenso com vocês. Sobretudo de manhã para vos despachar para a escola e, ao fim do dia, quando chegava a casa. Deixava-me levar pelo sentimento de impotência, como se gritar fosse a única arma que me restasse. Depois ficava desesperada. No regresso do trabalho fazia sempre filmes românticos de como íamos ter um fim de tarde de conversa e brincadeira, sereno e feliz, mas quando entrava em casa vocês ou estavam em guerra uns com os outros e queriam um árbitro, ou ainda não tinham feito os TPC, e havia sempre um que se recusava ir para o banho e outro que protestava porque me tinha esquecido de comprar uns lápis que me pedira. E lá começava eu a gritar o rol de tudo o que tinha feito por vocês desde o momento da concepção, ressalvando a vossa ingratidão, num discurso de pena de mim mesma que a frio me envergonhava.

Há uns anos li um livro da Magda Dias que tem um título genial Berra-me Baixo, e foi uma revelação. Gosto imenso do estilo sereno e realista daquilo que escreve, sem sermões, nem aqueles laivos narcísicos que, por vezes, estes livros têm. Para já, começa por nós pedir para nós interrogarmos a nós próprias: porque berramos? E a partir daí é mais fácil percebermos como mudar a forma de comunicação.

E seguindo as suas “ordens” concluí que berrava para mascarar a minha falta de autoridade. Odeio castigos, sou incapaz de os aplicar com a consistência que necessitam para serem eficazes, por isso entregava-me aquele fogo-de-artifício só para me auto convencer de que não era uma mãe banana e que não tinha cedido — porque era o que acabava invariavelmente por acontecer — sem antes ter dado alguma luta. Uma palhaçada, como tu dizias, mas que me deixava amargurada, frustrada e cheia de culpa.

Traumatizei-te? Tu gritas pouco...

***

Querida Mãe,

Não grito muito em sua casa, mas na minha, não é bem assim! Bem, se mãe não se orgulha de ter gritado, imagine como, agora já mãe, me sinto por a ter chamado palhaça!!!

Exactamente por causa desse livro e de outros igualmente sensatos, hoje em dia consigo ouvir-me a mim própria a gritar e há uma parte de mim — que imagino sempre como uma Ana sentada a beber uma caipirinha —, que me diz “Calma, sai desse sítio porque não vale mesmo a pena.” E o meu Eu Gritante responde, como todas as crianças com birra “Não! Quero ficar aqui mais um bocadinho”, porque gritar alivia momentaneamente a ansiedade – não é por acaso que gritamos tanto numa montanha russa! O pior é que, neste caso, estamos à frente de uma outra pessoa que não vai ficar calada e que vai escalar também, e mais zangada nos vai dizer alguma coisa, que por sua vez nos vai levar a perder ainda mais a cabeça. Dá-me vontade de rir a forma como esperamos que as crianças se “auto-regulem” e “parem com isso” quando, nós adultos, andamos aqui há tanto tempo a fazer promessas de que “Desta vez vou-me controlar e não gritar”, promessas que na melhor das hipóteses duram uns minutos.

Mas estes livros, estas intenções de nos tornarmos pessoas melhores e de aprendermos maneiras mais saudáveis de manifestarmos as nossas emoções — que é aquilo que 99% dos pais querem transmitir aos filhos — podem correr o risco de nos fazer sentir que estamos sempre a falhar. Mas, mãe, é um risco que vale a pena correr porque acredito que é assim que vamos melhorando e crescendo, mas é muito importante percebermos que isto é um caminho difícil, com altos e baixos.

Dá-nos, também, uma oportunidade única de perceber melhor por que é que as crianças fazem coisas que sabem que não devem fazer. “Como é que ele bate no irmão só por causa de um lego? Como é que ele não se controla, sabendo que só vai piorar a situação, que bater é errado e que vai receber um castigo? Como!?”, ou “Por que é que ele continua a não fazer aquele trabalho de casa, apesar de saber que precisa de o fazer, que todos se vão chatear com ele e que era muito melhor se o despachasse?”, para concluirmos sempre que só pode ser porque quer. E quanto mais pensamos nisso, mais nos parece que se consegue não bater quando está na escola e bate em casa, é porque tem essa capacidade de controlo; que se faz o trabalho na escola sem refilar e não o faz em casa, é porque é preguiçoso.

Mas então e nós? Também somos capazes de não gritar desenfreadamente quando estamos com eles no centro comercial – ainda que vontade não nos falte — e gritamos em casa, e se sabemos todas as razões pelas quais não devíamos gritar porque é que gritamos? Mais, nós nem queremos gritar! E, no entanto, em determinadas circunstâncias não conseguimos deixar de o fazer. Contra toda a nossa vontade.

Conscientes disto podemos fazer uma coisa importantíssima: perceber quais são essas circunstâncias e resolvê-las ou evitá-las. Eu chego ao limite de gritar quando tenho várias solicitações ao mesmo tempo? Ou quando estou mesmo exausta? Ou quando o meu marido não está em casa e por isso sinto que não posso fugir dali se for preciso e passo-me? Ou é quando o meu filho me pede uma coisa específica e porque é que isso me afecta assim tanto? Porque não a posso dar? Enfim, todas estas perguntas darão imensa informação que me ajudará a resolver o problema verdadeiro (que não é gritar, isso é só uma consequência, uma forma de comunicar que já não aguento mais). As boas notícias são que esse mecanismo funcionará tanto para nós como para os nossos filhos, não só pelo exemplo, mas pela capacidade de aprender a ler para lá do comportamento. Bonita teoria não é? Agora pôr em prática...

Mas fiquei curiosa: a mãe deixou completamente de gritar com as outras pessoas? É que se assim for podemos sempre concluir que nós afinal não temos culpa nenhuma: os filhos são mesmo uns monstrinhos que tiram qualquer pessoa do sério! O que me leva a outra curiosidade: como avó como gere a sua vontade de gritar com os netos? É que gritar com os filhos faz parte do pacote, os filhos não estranham (e não, não fiquei traumatizada), mas quando são os avós que gritam, reagem da mesma maneira? Gritam menos porque fazem mais cerimónia ou porque já têm mesmo mais capacidade de gerir emoções? Só para saber quanta esperança há para mim no futuro!

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