CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DIA 51: PODEMOS SER TUDO O QUE QUEREMOS?
Publicado em: 27/05/2020
Querida Mãe,

Depois de fazer o luto de acabar o seu novo romance histórico — privilégio de filha, pude lê-lo antes de todas as outras pessoas —, fui entreter-me a ver livros online. Quando passei pela secção dos de auto-ajuda fiquei sem palavras. Pela quantidade e por alguns dos títulos. Não é que tenha rigorosamente nada contra livros de auto-ajuda, na verdade gosto muito porque nos convidam a pensar (embora desconfie sempre de qualquer um que diga que resolver seja o que for), mas o que me impressionou foi a mensagem transversal à grande maioria de que “Podemos ser tudo o que quisermos”. Fiquei a pensar nisto, principalmente no que se refere à parentalidade. Fico sempre dividida neste tema.

Fez-me lembrar uma entrevista que a mãe fez ao Alain de Botton, em que ele falava sobre como a ideia de que todos podemos “chegar ao topo” e ter “muito sucesso” tem o lado perverso de deixar subentendido que quem não o atinge é porque não quer ou não se esforça o suficiente. A vida real está repleta de exemplos de como isto é mentira, mas como só os casos de “sucesso” é que chegam a escrever biografias é difícil não começarmos a pensar que tudo se resume a força de vontade e, para empregar o termo da moda, empreendedorismo.

O problema é que, na prática, quero dizer aos meus filhos que eles podem ser tudo o que quiserem! Não só porque reconheço o bom que tem sido este destruir de “paredes” que a sociedade tem feito em relação ao que é bem e visto em termos de empregos e vocações, mas também porque acredito que não estamos predeterminados a ficar onde estamos. Ou a ser o que os nossos pais foram. E essa liberdade é mesmo algo a valorizar. Mas como equilibrar estas duas visões? Como ajudar a perceber o valor de lutar muito por aquilo que se quer, mesmo que seja difícil, e ao mesmo tempo aprender a desistir quando percebemos que há limitações para as quais não temos, pelo menos no momento, forma de ultrapassar? Porque acredito firmemente que ao contrário do que se costuma dizer desistir tem tanto valor como persistir. Ambos podem ser um defeito e ambos podem ser uma virtude.

O Alain de Botton diz sempre que A Escola da Vida aprende-se através das pessoas mais experientes e mais velhas que nós. Por isso, pergunto-lhe a si... à minha primeira e mais importante professora!

***

Querida Filha,

Hum, o elogio da última linha da tua carta está de alguma forma ligado à abertura próxima das salas de cinema e às tuas adoradas pipocas? É que se sim, resultou, quando é que queres que fique com eles?

Quanto à alergia ao “podemos ser tudo o que queremos”, em versão populista, não há anti-histamínico que lhe valha. Como dizes passámos de destinos profissionais predestinados no berço, com uma escolaridade limitada muito cedo em função do rendimento dos pais, para uma ilusão de que a vontade só por si pode tudo, o que obviamente redunda num sentimento de frustração. E de falhanço. De facto, como educar os nossos filhos a acreditar que, regra geral, com talento, trabalho e persistência chegam lá, mas que há mil outros acasos que entram na equação. Como não sei a resposta, e quero muito que continues a pensar que sei tudo, faço como os políticos nas entrevistas, e escolho a tua segunda questão: a virtude de saber desistir.

Como sabes, tem havido momentos em que vos tenho implorado para não moerem mais a cabeça com um projecto, e fecharem o capítulo. É muito mais sensato parar antes de ter um “esgotamento nervoso”, é muito mais inteligente adiar e esperar condições económicas mais favoráveis, por exemplo, mas nunca consegui que vocês me dessem ouvidos. E, pior, tantas vezes nem eu própria sigo os meus sensatos ditames, como se desistir só fosse uma possibilidade quando caímos para o lado ou alguém nos fecha definitivamente a porta na cara. Mas arrependo-me. Ou seja, acho muito bem que tentes educá-los a perceber melhor os seus próprios limites, a não sentir como uma derrota o momento em que o corpo não dá mais, uma lesão impede os Jogos Olímpicos, ou ninguém quer comprar uma ideia que achamos brilhante.

Agora fizeste-me pensar. Já reparaste como tendemos a falar nos sucessos dos nossos filhos — as notas, o curso para que entraram, o emprego que arranjaram — mas, envergonhados, escondemos aqueles insucessos que sabemos que, na nossa cultura pelo menos, dão “má fama”? Por exemplo, uma empresa que faliu, mesmo que a experiência tenha sido uma aprendizagem fantástica, uma décima que faltou para a entrada na universidade, uma fobia social que os impede de concorrer a um cargo, e por aí adiante? Eles ouvem-nos a falar dos insucessos de outras pessoas, as acusações de indolência e preguiça, percebem os juízos que fazemos do que não é “perfeito”, inclusive em nós mesmos (só esta Primavera já me recriminei mil vezes à frente delas por não estar mais magra, por não ter a determinação de seguir uma dieta), mas depois queremos que acreditem nas nossas lições de sabedoria coladas com cuspo.

Não, também não tenho resposta para esta tua questão. Desisto. Para seres coerente, não me podes fazer pagar as consequências, mantendo-me no pedestal em que me colocaste.

Até amanhã.

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