CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DIA 50: COMO OS GRITOS DISTANCIAM OS NOSSOS CORAÇÕES
Publicado em: 26/05/2020
Querida Filha,

Perguntaste-me, na carta de ontem, se já não grito. E se tenho vontade de gritar com os netos, ou se me passou com a idade. Vou tentar ser mesmo honesta, revelando tudo.

Ora bem, grito muito menos do que quando vocês eram pequenos e a principal razão é que estou infinitamente menos cansada, menos stressada e com noites mais bem dormidas.

A segunda revelação é que há menos gente com quem gritar, muito menos gente a confrontar-me abertamente, seja na minha vida profissional (as vantagens de trabalhar por conta própria), seja na minha vida pessoal, desde que vocês os três saíram de casa.

Mas, às vezes, grito com o resistente que ainda resta. Já percebi que há frases, comentários, afirmações que me fazem perder a cabeça instantaneamente. Revendo os episódios, chego à conclusão de que estão sempre associados a uma sensação de estar a ser injustiçada, mas o que me tira realmente do sério são as perguntas que me soam a “sonsas”, porque tenho a certeza absoluta de quem as faz já conhece a resposta e me quer provocar.

Muitas vezes, mais calma, tomo consciência de que inadvertidamente, ou não, puseram o dedo em feridas antigas ou que reagi à defesa porque atiçaram a minha culpa omnipresente. Pode ser uma coisa tão insignificante como quando constata que lhe falta um botão na camisa. Não diz que sou eu que devia ter reparado e pregado diligentemente um botão novo, eventualmente nem o pensa, mas tomo aquilo como uma acusação de não ser a fada do lar que ele desejava que eu fosse.

Grito também, ou tenho vontade de gritar, com as pessoas que buzinam nos cortejos de casamentos, indiferentes ao incómodo que causam aos infelizes que têm o azar de viver perto de alguma igreja, grito com aqueles condutores de tuk-tuks que ultrapassam como loucos, numa nuvem de ruído e fumo, e que não param para deixar uma mãe e quatro crianças atravessar a rua — e nota bem, que não disse todos os condutores de tuk-tuk, mas “aqueles” que não respeitam ninguém. Espera, espera, prometi honestidade e aqui a tens: grito a plenos pulmões com o desplante de quem estaciona um carro atrás do nosso, impedindo-nos de sair, e quando finalmente aparece em lugar de pedir desculpa, diz “Oh minha senhora, eu estava a trabalhar!”. Ui, até já estou a hiperventilar.

Quanto à tua pergunta sobre se tenho vontade de gritar com os netos, a resposta é que sim, às vezes, mas só nas situações em que me confrontam directamente, em que fazem comigo um braço de ferro. Faço um esforço grande para me controlar, confesso, para não perder a imagem da avó querida e compreensiva — e ainda dizemos que não estamos a concorrer com os pais...

***

Querida Mãe,

Obrigada pela sinceridade! É tão engraçado ver descrito no papel as coisas que a fazem gritar, porque acho que independentemente dos contornos – as buzinadelas dos casamentos não me provocam uma reacção tão visceral — parece-me ser mesmo universal que gritamos quando nos tocam nas feridas ou quando nos causam uma sensação sensorial como dor ou desconforto. Mas fiquei a pensar, porquê gritar? Podíamos ficar zangados, mas não gritar. Porque é que temos esse reflexo tão presente? Tem alguma utilidade evolucionária?

Descobri uma resposta tão bonita, ainda que não científica, que não resisto a partilhá-la consigo. Aparentemente há uma antiga parábola hindu que conta como um santo visitava o Rio Ganges quando, na margem, viu os membros de uma família a gritar de raiva uns com os outros. O santo virou-se para os seus discípulos, sorriu e perguntou-lhes: “Porque é que as pessoas gritam de raiva umas com as outras? Um dos discípulos respondeu: “Gritamos porque perdemos a calma.” O mestre continuou: “Mas porque é que havíamos de gritar quando a pessoa está mesmo ao nosso lado? Pode-se dizer tudo na mesma, mas mais baixinho, não?” Os discípulos foram oferecendo respostas, mas nenhuma satisfazia o mestre. Finalmente, explicou: “Sabem, é que quando duas pessoas se zangam os seus corações afastam-se tanto que são obrigadas a gritar para o som percorrer toda essa distância e se fazerem ouvir. Quanto mais zangados estiverem, mais alto e com mais força vão ter de gritar. Reparem, o que acontece quando duas pessoas se apaixonam? Falam baixinho. Porque os seus corações estão muito próximos. A distância é mínima ou inexistente. Quando se amam ainda mais, o que é que acontece? Não falam, só sussurram e aproximam-se ainda mais. Finalmente, nem precisam de sussurrar, apenas de olhar.”

Por isso, disse o santo, “quando discutirem não deixem os vossos corações distanciar-se, não digam palavras que afastem ainda mais a outra pessoa. Ou chegará o dia em que a distância é tão grande que será difícil descobrir o caminho de regresso.”

E é mesmo isto. Pais, filhos, netos, maridos ou mulheres, parece-me uma boa imagem para ter em mente!


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