CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 A SÍNDROME DA TIA POLDI
Publicado em: 28/10/2020
Acordei cheia de vontade de trocar os móveis de sítio, e reconheci em mim a mesma agitação que, suspeito, presidia à agitação da tia Poldi, o mesmo desejo de pôr em ordem o mundo dentro de portas, porque o lá de fora está tão caótico.

Quando era pequena, tínhamos uma vizinha de cima que mudava os móveis de sítio todas as noites e embora conste que nos habituamos aos ruídos de tal forma que os deixamos de ouvir, nunca deixei de acordar com a cómoda a ser empurrada para o lugar onde dantes estava o aparador, ou as mesas de cabeceira a passarem a mesas de pés, imaginava eu, porque na verdade nunca lá tinha entrado. E embora fosse para mim mais ou menos evidente que os móveis se chamavam móveis porque é suposto moverem-se, ninguém lá em casa parecia comungar da mesma opinião e suspeito de que durante as insónias provocadas pela tia Poldi (nunca lhe conheci outro nome), os meus irmãos terão desejado que fosse ela a mover-se para outro andar que não aquele, por cima de nós. De dia, raramente a víamos, o que também não admirava ninguém porque depois de uma noite tão atarefada, sossegava naturalmente quando o Sol se levantava — e eu compreendia-a, sempre dormi melhor quando a escuridão dá lugar à luz. Mas houve uma vez que me cruzei com ela, é obrigatório que tenha sido assim, porque lhe emprestei o livro da “Pollyana”, julgando que a história de uma menina megavirtuosa e feliz, que ainda por cima supunha ser sua homónima, a consolaria daquilo que mesmo uma criança de oito anos entendia só poder ser um distúrbio de solidão. E, consolada, finalmente nos deixasse dormir. Não deixou de mover móveis, lá está, limitava-se a cumprir o destino dos mesmos, mas uns dias depois bateu-nos à porta e não só me devolveu o meu livro — que jurou ter adorado —, como me ofereceu um exemplar da “Emma”, da Jane Austen, com uma capa de couro encarnada que guardo religiosamente. Pouco depois, ou pelo menos parece-me assim porque os miúdos não procuram ações de causa e efeito, nem se importam com as lacunas de informação, a pobre tia Poldi morreu. E os móveis sossegaram com ela.

Lembrei-me de repente de tudo isto, porque hoje acordei cheia de vontade de trocar os móveis de sítio, e reconheci em mim a mesma agitação que, suspeito, presidia à agitação da tia Poldi, o mesmo desejo de pôr em ordem o mundo dentro de portas, porque o lá de fora está tão caótico.

A sensação de impotência é corrosiva, e todos temos as nossas artimanhas para no dia a dia reduzirmos o universo a um lugar onde “mandamos” alguma coisa, mas esta pandemia deixa muito claro que essa ilusão é um faz de conta infantil. Pior do que morrer é morrermos sozinhos, pior do que perder alguém que amamos é não nos despedirmos. Mas também é mau vivermos sozinhos, conversando com a cadeira de baloiço ou com o fogão porque as escadas para ir à rua têm demasiados degraus (mais difíceis de subir do que descer), e a televisão garante-nos que lá fora o mundo está perigoso e o melhor é ficarmos por ali.

Por isso, já que não posso arrumar o SNS, dar mais recreio às escolas, e mais pais àqueles que o Estado continua a manter em banho-maria (o bebé deixado no lixo um ano depois ainda não foi adotado!), nem tão-pouco convencer António Costa a “desagendar” a nacionalização da TAP, martelando mais uma dúzia de pregos no caixão do deficit, vou ali trocar o sofá de sítio e já venho.