CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 VAMOS BRINCAR AOS BONS E AOS MAUS
Publicado em: 02/03/2021
Sempre tive muito presente a ideia de que não conseguiria viver com a culpa de tirar a vida a alguém. Apesar dessa consciência viciei-me, aos 13 anos, num jogo – o GTA – em que basicamente o divertimento era andar de carro e atropelar pessoas.

Querida Mãe,

Sabe qual era o meu maior pesadelo quando era mais nova? Matar alguém sem querer. Na verdade, ainda está no meu top de medos. Sempre tive muito presente a ideia de que não conseguiria viver com a culpa de tirar a vida a alguém. Apesar dessa consciência viciei-me aos 13 anos num jogo – o GTA – em que basicamente o divertimento era andar de carro e atropelar pessoas.

Há pouco tempo vi os meus sobrinhos a jogá-lo e não consegui evitar estremecer de cada vez que uma pessoa era atropelada. Uma parte de mim queria dizer “Ai miúdos que violência”, mas a outra, a que se lembrava de como adorava aquele jogo, calou-se e tentou lembrar-me de que na altura eu não associava aqueles bonecos a histórias reais, com familiares, dores e mortalidades definitivas. Mesmo já percebendo a teoria do que era a vida e a morte, não tinha ainda visto imagens reais, ou vivido experiências reais suficientes para que aquilo me tocasse a fundo. Também vibrava com filmes e livros de histórias trágicas – crianças raptadas e enfiadas em caves — e agora literalmente desligo a televisão ou saio da sala do cinema (quando os havia!).

Por isso assumi que os meus dias de violência tinham acabado. Que ganhara maturidade e sabedoria suficiente para saber que a guerra é uma estupidez e que mesmo brincar a ela é um desperdício de tempo, até ao dia em que fui surpreendida. O Mini E. descobriu o prazer das lutas, e confesso que não sei bem onde porque os estímulos dele vêm a cor-de-rosa, roxo e brilhantes, e os objectos mais pontiagudos do seu quarto são varinhas mágicas. Agora tudo são pistolas ou espadas, e eu vario entre ser “o Mau” que “rouba” coisas, e ele o super-herói que as vai resgatar, ou uma “vítima” da maldade dele.

Surpreendeu-me porque as minhas três outras experiências de filhos mostraram-me coisas muito diferentes, mas quando pensei melhor no assunto lembrei-me que o comportamento dele não tem nada de original, vi-o nas crianças com que trabalhei e estudei-o na faculdade. Mas aquilo de que não estava mesmo à espera era do prazer que me daria a MIM brincar às lutas! Aqui estava eu, que hoje em dia tenho dificuldade em matar mosquitos, a rebolar pelo chão com uma arma falsa e a fazer sons de tiros contra os meus próprios filhos! Eu que morro de medo da morte a brincar a ela? Para quê? Porquê?

Felizmente encontrei respostas nas sempre sábias palavras dos professores Carlos Neto e Frederico Lopes: “As crianças brincam às guerras (faz-de-conta) de forma simbólica e adquirem várias competências muito importantes: noção de ataque, defesa, território, fuga, simulação, sobreviver, morrer, etc. Estas formas de brincar são muito importantes durante a infância e são uma estratégia decisiva para interiorizar e humanizar os impulsos agressivos, que fazem parte da natureza humana.”

Uf, saiu-me o jackpot: eu divirto-me, ele diverte-se e, para usar uma palavra da moda, é “pedagógico”. Já posso dormir descansada!

Quer juntar-se aos Bons ou aos Maus na nossa brincadeira?

Beijinhos!

***

Querida Ana,

Ri-me tanto com a tua carta. Eu é mais espadas! Adoro lutas de espadas, e tenho oferecido espadas a todos os meus netos, ou seja, a seis raparigas e a dois rapazes. Porque essa conversa de que os brinquedos bélicos aumentam a agressividade e os comportamentos anti-sociais é fake news, e se forem necessárias testemunhas recorro, como tu, aos professores Carlos Neto e Frederico Lopes que dizem isso mesmo.

E dizem mais: estas brincadeiras existem nas mais diversas culturas, nos mais diversos continentes, pela simples razão que somos todos feitos da mesma massa. E todos temos vontade de esganar alguém de vez em quando, e mais frequentemente ainda desejamos uma mão cheia de superpoderes — se formos capazes de exorcizar os nossos medos através da brincadeira, num jogo de faz de conta, a probabilidade de “passarmos ao acto” é muito menor.

Por tudo isso alinho — mas quero ficar do lado dos Bons, porque no final das contas, os Bons têm de ganhar sempre.


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