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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
PSICANÁLISE NO LUGAR DO PASSAGEIRO
Publicado em: 28/04/2021
Continuamos dependentes de fatores exógenos para vivermos como realmente queríamos, dependentes de bengalas, porque nos sentimos incapazes de dizer mais vezes a palavra Não.
Estou a escrever este artigo no carro. Com papel e caneta, coisa que já não faço desde a Idade da Pedra, ou por aí. À minha frente tenho um castanheiro coberto de folhas novinhas que só apetece trincar, e os passarinhos chilreiam depois de uma chuva torrencial, felizes porque a mudança da hora lhes deu uns fins de tarde cheios de luz. Não me posso queixar deste gabinete improvisado, mas, simultaneamente, pergunto a mim mesma porque é que não vou para casa escrever - evitando depois passar tudo isto a computador -, ou em alternativa para o escritório.
Porque estou farta de estar em casa, talvez seja a resposta à primeira pergunta, porque não me apetece ver gente, nem conversar (embora eu adore conversar!), será a resposta à segunda.
Suspeito de que não sou a única que, neste momento, anda aqui numa terra de ninguém, sem vontade nenhuma nem de andar para a frente, nem de voltar para trás. Desejosa de trabalhar presencialmente em equipa, voltar a encontrar-me em carne e osso com os outros, continuar projetos que ficaram a meio, mas também a sentir uma vontade imensa de manter o regime de teletrabalho, o maior controlo sobre o meu dia a dia, sem abrir mão do "pretexto" da pandemia para ser antissocial, ou mesmo ermita.
Será que há por aí mais gente a pensar (só a pensar) que preferia não receber já, já a vacina, não por medo dos seus efeitos - nem os da A, nem os da B, da C ou da YZ -, mas apenas para prolongar mais um bocadinho o "Ai desculpe, mas não posso porque é muito perigoso..."? Mas que, ao mesmo tempo, se regozijam por se terem visto livres das entregas dos CTT Expresso e poderem entrar numa loja física e comprar um vestido para uma festa de casamento muito aguardada? E que à noite têm pesadelos em que marcam dois compromissos megaimportantes para o mesmo dia e à mesma hora, sem saberem como descalçar a bota sem ofender ninguém, e acordam a suspirar de alívio porque não passou de um sonho mau (por enquanto)?
Este carro é confortável, e embora não seja exatamente o equivalente ao divã do psicanalista, permite uma versão mais doméstica de sondagem do Inconsciente, para concluir que basicamente todos estes sintomas indicam que não estamos nada seguros de ter aprendido alguma coisa com este ano e meio de confinamentos. Ou seja, continuamos dependentes de fatores exógenos para vivermos como realmente queríamos, dependentes de bengalas, porque nos sentimos incapazes de dizer mais vezes a palavra Não, incapazes de nos libertarmos de uma educação que nos ameaça com o pecado da preguiça, eternamente convencidos de que só estamos a dar o nosso melhor, se estivermos a correr e assoberbados de trabalho.
Ou talvez não seja nada disto, e seja só medo do que aí vem. Se ao menos tivéssemos a descontração de António Costa, que ainda na segunda-feira, em Valença, perante os protestos dos manifestantes, deu duas palmadas nas costas do ministro das Infraestruturas e da Habitação, e puxando-o para a frente da batalha anunciou alegremente: "Queixem-se aqui ao Dr. Pedro que ele ouve-vos!" E foi à sua vida. Pois é, se calhar é mesmo isso, medo da viagem que estes dois nos prepararam e que não temos outro remédio senão fazer no lugar do passageiro.
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