CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 NÃO PODEMOS IR A TODAS
Publicado em: 30/11/2022
O excesso de culpa não leva a mais ação, mas apenas a um enorme sentimento de impotência. E o sentimento de impotência conduz-nos ao sofá. De braços cruzados, sozinhos e deprimidos, facilmente manipuláveis por aqueles que sabem fazer da culpa uma ideologia.


Acabei de ver o filme “As Nadadoras”, e fiquei com um enorme sentimento de culpa, mais um. Culpa por me ter esquecido do drama dos refugiados da Síria. Culpa por não estar como voluntária num daqueles campos de acolhimento. Culpa por fazer parte de uma sociedade capaz do melhor, mas também do pior.

A seguir vi o jogo de Portugal contra o Uruguai e lá estavam os anúncios da Amnistia Internacional a recordar aqueles que morreram a construir estádios, e lembrei-me imediatamente da luta das mulheres iranianas pelo mais elementar direito a soltar o cabelo ao vento, e senti-me horrivelmente culpada. Sem o apoio internacional constante e firme, serão esmigalhadas por um regime brutal. E eu aqui a ver o jogo...

Saí à rua e indignei-me com as luzes de Natal. Num momento em que a palavra de ordem é poupar energia, tratam-nos como crianças incapazes do sacrifício de não ter ruas iluminadas com sininhos e estrelinhas! É uma forma simbólica de passar o drama da Ucrânia para segundo plano, superado o susto do míssil na Polónia, como se as pessoas valessem mais conforme o lado da fronteira em que morrem. E culpei-me, pelo atraso no donativo à Unicef.

Parei em frente de uma montra e senti o frenesim do consumo, quando me lembrei de que este ano é fundamental substituir os presentes por apoio aos nossos vizinhos afetados pela inflação e pelo aumento do custo de tudo e mais alguma coisa. E a culpa voltou porque, dito isto, não resisti a comprar.

Exausta por tanto remorso, confesso que misturei o lixo — que ainda por cima já estava separado! — só para não ir ao contentor que fica mais longe e imaginei como seria apedrejada caso se soubesse. Enquanto saí, quatro gatos entraram na cozinha e devoraram uma dourada temperada e pronta a grelhar e só não os esganei porque não os apanhei — aí se algum militante fanático da suposta defesa dos animais me lesse os (maus) pensamentos. Como castigo, não me meti no carro para não deixar uma pegada carbónica e não liguei o aquecimento para não contribuir para a dependência dos combustíveis fósseis. Sentei-me antes ao sol a procurar absorver vitamina D que me permitisse resistir a tanta culpa e a encontrar a coragem de enumerar publicamente as minhas falhas, sujeitando-me à nova Inquisição.

E foi então que tive um modesto eureka.

Enquanto se milita contra a cultura judaico-cristã, acusada de transformar tudo em pecado, obrigando a confissões privadas e públicas, a penitências, jejuns e até à fogueira, cria-se uma outra com ainda mais mandamentos, pecados mortais e veniais, linchamentos (na comunicação social e nas redes sociais) e cancelamentos (entre amigos, no Facebook e, mais perigoso ainda, nas universidades), mantendo a ameaça comum, nada mais, nada menos, do que um apocalipse.

Marcelo Rebelo de Sousa foi desajeitado no “Esqueçam lá isso” dos direitos humanos por um bocadinho, mas a verdade é que não podemos ir a todas — temos de escolher as nossas causas, estudá-las em profundidade e defendê-las com persistência e determinação, e quanto ao resto deixar-nos guiar pela nossa grelha de valores e pelo bom senso. Concedendo-nos, sempre, o direito a clareiras de prazer e de alegria, sem constantes recriminações. Porque o excesso de culpa não leva a mais ação, mas apenas a um enorme sentimento de impotência. E o sentimento de impotência conduz-nos ao sofá. De braços cruzados, sozinhos e deprimidos, facilmente manipuláveis por aqueles que sabem fazer da culpa uma ideologia.