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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
OS RAPAZES GANHAVAM EM ENTRAR MAIS TARDE PARA A ESCOLA
Publicado em: 16/07/2025
É uma decisão difícil, para mim foi, porque em última análise é uma área cinzento, porque na maior parte dos casos os pais têm de dar o seu consentimento a que a criança “repita” o ano.
Querida Mãe,
No outro dia encontrei um livro nas suas estantes chamado “Mais Vale Tarde do que Cedo”, dos autores Raymond e Dorothy Moore, ambos professores e especialistas em Educação. O livro rebatia, já em 1975, a ideia de que a escolarização precoce das crianças era vantajosa, num momento em que os legisladores nos EUA queriam recuar a idade de entrada na “escola” para os cinco anos, quando tradicionalmente era aos sete. Se o livro e a pesquisa que inclui teve relevância na altura, comprovando que as crianças precisavam de uma janela muito maior de desenvolvimento antes de se lançarem a currículos mais estruturados, imagine agora em que a pressão para o desempenho académico se intensificou de uma forma absurda. Num momento em que se transformou o pré-escolar – altura em que o cérebro está desenhado para explorar o mundo com os sentidos e com a “mão na massa” – numa corrida para ver quem chega ao primeiro ano mais “bem preparado”, obrigando os miúdos a ficarem sentados a preencher fichas, exigindo um pensamento abstrato para o qual não estão desenhados.
Se isto é verdade para todas as crianças, os estudos atuais revelam que é flagrante no caso dos rapazes e que pode mesmo haver benefícios em atrasar um ano a sua entrada na escola, em relação à entrada das raparigas. Num artigo interessantíssimo que saiu há dias no New York Times sobre este assunto, falam de estudos feitos ao longo de décadas com milhares de estudantes, em que se compararam as crianças de uma mesma turma, consoante a idade em que tinham começado o ano letivo, ou seja, as que tinham acabado de fazer cinco anos, com as que estavam quase a fazer seis. As crianças mais velhas obtiveram melhores resultados tanto nas provas do 3.º ano, como, embora com menos impacto, nas do 8.º ano. Tinham, além disso, uma menor probabilidade de serem diagnosticadas com déficit de atenção e hiperatividade, taxas de abandono escolar muito inferiores, uma maior probabilidade de seguirem e terminarem um curso superior e de terem uma vida mais estruturada. E o espantoso é que estes resultados foram não só transversais a todos os contextos familiares, mas particularmente relevantes para os rapazes e para as crianças de famílias socialmente desfavorecidas.
Mãe, o artigo cita muitos outros trabalhos que corroboram os resultados desta investigação. E, como é óbvio, a explicação nada tem a ver com inteligência, mas com o facto de os rapazes demorarem um pouco mais a desenvolver a sua capacidade de autocontolo, de serem capazes de se sentarem quietos, de se concentrarem e de levarem as tarefas até ao fim, tudo armas fundamentais para o sucesso académico. O mais curioso talvez seja a conclusão de vários especialistas de que atrasar um ano a entrada dos rapazes na escola tem ainda mais impacto na adolescência, porque é nessa altura que a diferença de maturidade entre rapazes e raparigas vai de novo registar uma discrepância de um ano e meio, porque a puberdade delas começa mais cedo — ou seja, prevenia-se a frustração que tantos alunos sentem exatamente quando o desempenho escolar “já conta muito”.
Em Portugal, temos a hipótese de as crianças chamadas “condicionais” (que só fazem 6 anos depois de setembro) ficarem mais um ano no pré-escolar, mas, curiosamente, muitas das educadoras relatam dificuldade em convencer os pais de que este “atraso” tem vantagens para os seus filhos e que não significa “chumbar”, como muitas vezes é visto.
Seja como for, mãe, parece-me a mim, e a alguns dos entrevistados pelos NYT, que estas soluções são remendos colados à pressa num sistema que está cada vez mais a ignorar a aprendizagem através da brincadeira e a “sobre-intelectualizar” o ensino, colocando uma ênfase excessiva nas “notas”, continuando a promover mais o decorar do que o pensamento crítico, com evidentes maus resultados tanto em termos de saúde mental como de sucesso escolar, e sim, principalmente nos rapazes.
Isto só prova que a mãe já estava muito à frente do seu tempo quando comprou aquele livro. Sei que o meu irmão mais velho foi dos que ficou na charneira de que falamos, fazia seis anos em outubro num colégio internacional que punha como data limite o mês de julho e, por isso, teve de esperar até ao ano seguinte para entrar. O que é que aprendeu com essa experiência?
Beijinhos
***
Querida Ana,
Este é o momento certo para falar sobre este assunto, obrigada por o teres tornado em assunto de Birra porque há, seguramente, muitos pais que enfrentam este dilema ou acabaram de tomar uma decisão no sentido de apressar os seus filhos para o nível seguinte, ou de concordar em “retê-los” mais um ano na pré-primária.
É uma decisão difícil, para mim foi, porque em última análise é uma área cinzenta, porque na maior parte dos casos os pais têm de dar o seu consentimento a que a criança “repita” o ano. É difícil por duas ordens de razões.
Primeiro, porque os pais, sobretudo de um primeiro filho, estão inseguros de si mesmos, têm medo de os não ter “estimulado” o suficiente, têm medo dos comentários dos avós e dos tios, das comparações com o primo ou o filho da amiga que parece “mais adiantado” do que o seu. Ainda por cima, a maturidade é uma entidade relativa do ponto de vista dos pais, porque uma criança pode ser muito sensível, criativa, madura emocionalmente e, simultaneamente, ter dificuldade em ficar sentada numa cadeira, ou dominar a motricidade fina, e essas coisas todas que a escola valoriza tanto e com uma exigência estupidamente crescente, mas os pais não... Fere-os, de alguma maneira, no seu ego, na sua vaidade (que todos temos).
Segundo, porque temem que magoe o seu filho, que o faça sofrer, que prejudique a sua autoestima, que fique marcado por ver os seus amigos “passarem”, enquanto ele fica para trás, porque podem pintar-lhe o filme com as cores mais bonitas que quiserem, mas é isso que vai sentir. Foi isso que o teu irmão sentiu, e até ao fim do percurso escolar, continuou nos recreios e fora deles a dar-se sobretudo com os “mais velhos” que o tinham acompanhado desde os três anos. Mas a verdade é que em termos académicos terá sido o melhor para ele, se queres que te diga nunca vou ter bem a certeza.
O que estou segura é de que na maior parte dos casos existe realmente esta diferença no desenvolvimento de rapazes e raparigas, e fiquei absolutamente convencida pelo livro que li nos anos 80, que mais vale tarde do que cedo para todos. E sabes o que é mais curioso? Em Portugal, pelo que consegui apurar, só em 1986 é que a entrada no primeiro ano de escolaridade obrigatória foi formalmente fixada nos seis anos, porque até aí a norma era os 7 anos, tida como a idade da Razão, o que agora parece ser confirmado por todos estes estudos. Nota bem que não estou a tentar “saltar” o jardim de infância, porque está mais do que provado que é uma etapa essencial para as crianças, um tempo que pode ser mágico quando entregues aos educadores certos e que alicerça todo o seu futuro, nomeadamente o seu sucesso escolar, desde que não pretenda ser um estágio para a escola. E o meu medo, Ana, o meu verdadeiro medo é que sejam os próprios pais nesta ânsia de sucesso que o queiram transformar naquilo que não deve ser: um treino intenso para uma corrida interminável e que, ainda por cima, produzirá resultados opostos aos que pretendem. Esse, sim, é outro tema para uma enorme birra.
Por isso, o meu apoio está todo com os pais e os educadores que têm a coragem de respeitar o desenvolvimento dos seus filhos, dos seus rapazes, e de escolher o que acreditam ser o melhor para eles. Mil vezes mais tarde do que cedo.
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