CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 O APROVEITAMENTO DA FRAGILIDADE ALHEIA
Publicado em: 20/08/2025
Apesar de tudo quanto a ciência descobriu, continuamos a falar de doença mental como se estivéssemos na Idade da Pedra.


Quando a chuva cai sobre as paredes do palácio de Queluz, o pigmento que as reveste muda de cor, e o azul alegre e vivo transforma-se, aos poucos, lentamente, num azul cinzento, mais escuro, mais triste, mais poderoso. Como pingos de tinta permanente num mata-borrão, as manchas alastram-se, até ao ponto em que se fundem, cobrindo tudo, e o palácio transforma-se, parecendo outro.

Dei pelo fenómeno quando estudava a vida de D. Maria I e a analogia com o processo que levou à loucura a habitante mais famosa daquela casa pareceu-me gritante. É que enquanto muitos dos seus biógrafos atribuem os sintomas à sequência dramática da morte do herdeiro, da filha e do confessor, o que os documentos revelam é que a doença mental da rainha não caiu dos céus aos trambolhões — nunca cai. Desde criança suportou a responsabilidade imensa de ser a primeira mulher a herdar o trono de Portugal por direito próprio e, por temperamento, ou pela força da genética e da educação, sentia o terror do erro, flagelada por um escrúpulo doentio quando imaginava tê-lo cometido, procurando apesar disso o melhor caminho num reino dominado pelo marquês de Pombal, abalado pelo terramoto de 1755, com o seu tsunami de culpas e castigos divinos, pela morte dos Távoras e a prisão de tantos dos seus amigos. D. Maria teve, afinal, consciência do risco de enlouquecer antes mesmo de ser aclamada, mas lutou corajosamente contra o seu enorme sofrimento interior enquanto foi capaz.

Esta semana voltei a pensar em tudo isto, chocada com a consciência de que dois séculos depois, e apesar de tudo quanto a ciência descobriu desde então, continuamos a falar de doença mental como se estivéssemos na Idade da Pedra. Como se existisse uma explicação simples para a escuridão que invade algumas (demasiadas) pessoas, impedindo-as de se agarrarem à esperança de que o amanhã as venha salvar de si próprias. Como se a depressão e as dependências fossem uma escolha, e o seu modo de operar não se assemelhassem em tudo às metástases de um cancro, que invadem cada centímetro das suas vítimas.

Não queria acreditar que no século XXI se continue a dizer que a cura depende da “força de vontade” do doente, que a batalha se perde quando falha a determinação para ultrapassar as pedras postas no caminho, para nos testar. Estes diagnósticos condescendentes são, na maioria dos casos, uma forma encapotada de narcisismo, de quem não resiste a proclamar ao mundo que também passou por grandes provas, mas que, ao contrário dos “fracos”, foi capaz de as vencer, superando-se. Sinceramente o aproveitamento da fragilidade alheia, provoca-me raiva, e só contribui para aumentar o estigma de quem sofre.

Enjoam-me, tanto ou mais, os que perante uma tragédia saltam para a praça pública em busca de bodes expiatórios ou, pior, da luz dos holofotes. Já para não falar nos que apontam o dedo à família das vítimas destas doenças, como se todo o cuidado do mundo chegasse sempre para salvar aqueles que amamos.

É verdade que quando o sol enxuga as paredes do palácio de Queluz, o azul claro volta a surgir e para muita gente, felizmente, não será demasiado tarde.