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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
TRAIR A UCRÂNIA É TRAIR NAVALNY E OS RUSSOS
Publicado em: 26/11/2025
Se trairmos a Ucrânia estamos, simultaneamente, a trair o povo russo, por quem Navalny e tantos outros deram a vida na esperança de travar a corrupção e a ditadura de um déspota que se está cinicamente nas tintas para o destino dos outros.
Tenho a certeza de que se me torturassem contava tudo. O que sabia e o que não sabia, procurando desesperadamente salvar-me da impossibilidade de dormir noites a fio, do terror que me tomaria perante a ameaça de que fizessem mal aos meus filhos. Jogaria na sorte e desbobinaria nomes e locais, agarrada à esperança de escapar. Mesmo sabendo que se sobrevivesse o remorso me secaria por dentro.
Se tivesse a opção entre fugir ou lutar, desconfio que encontraria todas as justificações para escolher a via mais fácil, argumentando que debaixo da terra não seria de serviço a ninguém, que no fundo, no fundo, atrás das grades teria muito menos poder de influenciar uma mudança do que a partir do Além. É sempre fácil arranjar desculpas.
Mas é por sentir que não tenho essa coragem extraordinária que admiro tanto aqueles que não abrem a boca mesmo quando pendurados de uma trave, esmurrados sem dó nem piedade, aqueles que não cedem mesmo sujeitos ao mais inimaginável sofrimento físico, e até que ficam, mesmo quando lhes abrem a porta da cela. Alexei Navalny foi um desses homens e, quase dois anos após a sua morte, continuo a abrir a página oficial do seu Instagram como que à espera de um milagre, para descobrir apenas o meu velho (e tão fácil) “gosto” na última publicação. Depois disso, mais nada.
A memória de Alexei tornou-se ainda mais viva quando esta semana ouvi o discurso de Zelensky, em que reagia à nojenta (é esta a palavra) proposta de “paz” que Vladimir Putin e Donald Trump querem impor à Ucrânia, nos querem impor a todos. É um dos momentos mais duros desta guerra, o momento de fazer uma escolha difícil, disse o presidente da Ucrânia, consciente da dificuldade em enfrentar simultaneamente um tirano louco e um bully narcísico que, sem escrúpulos, pretende descaradamente encher os bolsos, acumulando de caminho o que imagina serem créditos para uma coroação posterior.
A minha raiva ao ver Zelensky achincalhado pelo presidente dos EUA, que o chantageia a entregar o “jogo” por não ter mais “cartas na manga”, é inversamente proporcional à admiração que sinto pelo homem que perante a adversidade tem revelado a fibra de que é feito. Mas vai mais longe do que isso: se trairmos a Ucrânia, estamos, simultaneamente, a trair o povo russo, por quem Navalny e tantos outros deram a vida na esperança de travar a corrupção e a ditadura de um déspota que está cinicamente nas tintas para o destino dos outros. E, por favor, não me acusem de simplismo, afirmando que a realidade é muito mais complexa, porque esse é invariavelmente o discurso de quem busca desesperadamente atalhos em encruzilhadas onde só há, na verdade, dois caminhos.
Pois é, já que não temos a coragem de ser como os nossos heróis, podemos pelo menos fazer-lhes o favor de os apoiar quando mais precisam de nós, sem cair na tentação de começar a pôr-lhes defeitos, desejosos de os diminuir para não nos sentirmos tão mal por não sairmos do sofá. Quando há quatro anos, Mário Draghi disse que esta guerra ia pôr os europeus à prova, fazendo-os escolher entre manter o apoio à Ucrânia ou ligar o ar condicionado, punha o dedo na ferida. O dilema é esse: o nosso conforto pessoal ou os nossos princípios mais sagrados, na certeza de que se optarmos pelo primeiro, julgando assim evitar a forca, acabaremos como todos os traidores, mortos e desonrados.
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