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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
A PERDA MAIOR
Publicado em: 02/06/2016
Voz às mães que perderam um filho
Não existem palavras para consolar uma mãe que perdeu um filho, a mais inimaginável das dores. Mas podemos escutar. Deixar que nos ensinem o que, decididamente, não devemos fazer, como dizer que “Já é tempo” de andarem para a frente, ou julgar a forma como reagem, procurando ditar-lhes o luto. No Dia da Mãe, a Máxima deu-lhes voz.
Enquanto fala, Clara vai passando a mão pelo ursinho que pertencia ao enquanto puxa as orelhas ao teddy e troça de si mesma: “Se estivesse vivo provavelmente já não queria nada com este peluche com que ia para todo o lado, mas eu é que não me consigo separar dele — fica sentado na cadeira do meu quarto, discreto, mas sempre presente e ainda há noites em que não resisto e adormeço agarrada a ele.” E esboça um sorriso, para logo dizer: “Não interprete mal os meus sorrisos.” Protesto, fico feliz por a ver sorrir, ainda por cima é tão bonita, uns olhos azuis cheios de expressão, que se tornam ainda mais fascinantes em contraste com o cabelo preto e brilhante.
“É um tique justificarmo-nos, sabe? Sou psicóloga e não devia cair nestas armadilhas, mas a morte de um filho mostra-nos bem que na dor somos todos iguais. Não lhe posso contar como foram os primeiros meses, porque não me lembro, andava pela casa como um autómato. Sei que não dormia, porque sempre que fechava os olhos via e revia os últimos meses do meu filho, o desespero com que tentei abanar-lhe o corpo quando percebi que tinha partido, o último beijo que lhe dei.” Subitamente agitada, pousa o ursinho na cadeira e levanta-se para me oferecer um chá. Volta com duas canecas na mão e senta-se de novo: “O luto é um deserto pelo qual todas as mães que perdem um filho têm de passar e ninguém pode vivê-lo por elas. O que importa é contar-lhe o que me salvou, o que me devolveu o sentido para a vida: dois anos depois desse dia, acordei com a certeza de que tinha de voltar para aquele hospital, que tinha de ajudar outras mães que estavam a passar pelo que eu passei. Sabia que tinham um grupo de apoio ao luto e ofereci-me. Disseram-me que talvez fosse muito cedo, mas tendo em conta a minha profissão e a minha determinação acabou por acontecer. Tornei-me melhor pessoa, acho que é verdade, muito mais atenta aos outros, mais capaz de ouvir do que de receitar. Mas, acima de tudo, dei sentido à morte do João. Cada vez que percebo no rosto de uma mãe ou de um pai que estou a ser capaz de os consolar um bocadinho, sinto que não morreu em vão.” Olhei de relance para o ursinho, mas quase podia jurar que sorriu.
“Sou mãe de três filhos e não de dois! Como é possível que se esqueçam disso?”
A sala está cheia de fotografias de crianças, caixas de brinquedos a um canto. “Desculpe a desarrumação”, diz a Joana, enquanto apanha uma peça de Lego. “É esta a sua filha mais velha?”, aponto, e Joana passa-me a moldura para as mãos, com toda a naturalidade. “Sim, essa é a M.”, diz. Tinha quase dois anos quando morreu, durante o sono, sem aviso, na segurança do seu próprio berço. “Morte súbita”, escreveram no relatório da autópsia. Passaram quatro anos. Joana pousa de novo a fotografia ao lado das dos seus outros dois filhos, nascidos já depois da tragédia, e senta-se ao meu lado, disposta a contar-me a sua história. “Foi um pesadelo, que não consigo, nem quero descrever. Durante dois meses não fui capaz de reagir, as pessoas falavam comigo, mas não as ouvia. Aos poucos, percebi que tinha de escolher, ou punha fim à vida ou andava para a frente. E para andar para a frente era preciso descobrir quem já tivesse feito o caminho. Será que alguém sobrevivia a perder parte de si? E se sim, precisava que me dissesse como. Sabia que a minha avó perdera uma filha e que não tinha sido menos mãe e menos avó por isso, mas para meu desespero já cá não estava para responder às minhas perguntas. Foi o primeiro exemplo a que me agarrei. Depois soubemos de um casal com uma história muito parecida com a nossa, uma filha que também tinha morrido de morte súbita uns anos antes. Receberam-nos com uma abertura extraordinária, não nos conheciam de lado nenhum e aceitaram que uns estranhos lhes fizessem perguntas, as perguntas mais íntimas, e responderam a todas. Na altura já eram pais de mais dois filhos, e tomei consciência de que havia mães que conseguiam ser mães de novos filhos, sem esquecerem por um momento o filho que carregam só no coração.”
Uns meses depois Joana estava à espera de bebé. “Ao princípio irritava-me quando me diziam ‘Espero que seja um rapaz’, porque tudo o que queria era uma rapariga, mas hoje percebo que tinham razão. E foi um rapaz e ter sido rapaz tornou as coisas mais filho que, aos quatro anos, morreu de um cancro. Quando se comove, deixa o olhar cair sobre o boneco e morde o lábio, mas em geral o seu discurso é fluido e animado. O João teria hoje oito anos, recorda, fáceis para todos: o mundo era azul em lugar de cor-de-rosa, dava-se uma bola em vez de uma boneca”, explica.
Pouco tempo depois engravidou de novo, mas sublinha com convicção: “Um filho não substitui o outro, o amor multiplica-se. São os meus três amores. Na altura, marcou-me profundamente a história que uma tia nos contou de uma mãe de duas filhas que quando perdeu uma, nunca mais foi capaz de amar a outra. E como a que sobreviveu cresceu a sentir que mais valia ter morrido ela, porque era a irmã que a mãe amava. Em todos os momentos procuro que os meus filhos não fiquem marcados por uma história que não é a deles, é da família deles, mas não é a deles. Tudo o que queremos é que sejam eles próprios, que sejam felizes.”
Mas como se gere o medo de que também lhes aconteça alguma coisa? É preciso, a todo o instante, policiar os pensamentos, garante Joana. Esforça-se por acreditar que “as bombas na guerra não caem no mesmo sítio”, mas racionalmente sabe que há mães que perderam mais do que um filho, e quando ligam da escola, ou quando os filhos querem saltar do baloiço, ou subir muito alto, o coração bate descompassadamente. Para ser capaz de dormir à noite, além de um detetor de apneia, diz que teve de “criar uma mecânica que me permite acreditar que não vai acontecer de novo”.
A casa pode ter brinquedos e vozes de crianças, mas Joana não acredita que alguma vez deixe de estar em luto. Se por momentos não tem a filha de forma consciente nos pensamentos, sente-se a traí-la:
“Sinto-me culpada quando não me dedico a trabalhar as minhas memórias, a revivê-las, a tentar conservá-las com a nitidez que têm hoje, com as cores e os cheiros que ainda guardam. Há dias em que os meus outros filhos me ocupam tanto tempo, em que sou tão feliz com eles (embora nunca completamente feliz), que chego ao fim da tarde e, de repente, lembro-me que ainda não pensei muito nela, e é horrível”, diz com angústia. Que passa a raiva: “Magoa ver como os outros, mesmo os próximos, esquecem tão depressa. Não suporto quando dizem ‘ah, é a tua primeira gravidez’, quando é a segunda, ‘ai é a tua segunda gravidez’, quando é a terceira. Sou mãe de três filhos, não de dois! Como é que é possível que não se lembrem disso?”
O julgamento que faz de si mesma, no entanto, é ainda mais implacável: “Nunca mais saí à noite até tarde, não visto uma minissaia, não pinto os lábios e não consigo pintar as unhas com uma cor. E pintava sempre, sei que posso, mas não consigo, é um processo meu, mas sinto-me a trair a minha dor, a trair o meu luto”, confessa. É mais uma coisa a trabalhar na psicoterapia, que tem sido um dos seus grandes pilares. A certeza que a fé lhe dá de que um dia vai reencontrar o seu bebé é outro dos alicerces. “A morte da minha filha deixou-me com a certeza de que isto não pode acabar aqui, temos de nos voltar a encontrar. Deixei por isso de ter medo de morrer. Quero viver para tomar conta destes meus filhos e talvez, se Deus quiser, para ter mais, mas depois vou ter com ela. Vou voltar a ter ao colo o meu bebé”, diz, com os olhos rasos de lágrimas.
“Se não podia ser mãe da Mariana, não queria ser mãe de ninguém”
“Sabe o que me custou terrivelmente naqueles três meses em que esteve em coma, antes de morrer? O silêncio da Mariana. Ela era a alegria em pessoa, às vezes também tinha mau feitio, mas estivesse como estivesse fazia-se sempre ouvir. Deitada naquela cama, o seu silêncio era ensurdecedor”, conta Ana. Mariana tinha 22 anos quando sofreu um acidente de viação, em pleno dia, numa estrada sem carros, “aconteceu porque tinha de acontecer”.
Passaram sete anos, ia escrever “já” passaram sete anos, mas apaguei o “já”, consciente de que não faz sentido medir o tempo do luto de quem perdeu um filho por um calendário igual aos outros. “Chorei muito, mas depois deixei de chorar, o que é péssimo. Passei por um momento de grande revolta. Sou católica praticante e revoltei-me contra Deus: porque não podia intervir, fazer um milagre. Mas a revolta só me deixava mais frágil, porque era o mesmo Deus que me enraivecia aquele que me dava força. Felizmente o capelão do hospital era um homem extraordinário, nunca se impôs, começou por vir fumar um cigarro comigo para a varanda, depois passeávamos às vezes no jardim. Um dia, em desespero, explodi e disse-lhe: ‘Estou revoltada com Deus.’ E ele parou, olhou para mim e exclamou: ‘Até que enfim, estava a ver que nunca mais!’ Apanhou-me de surpresa e senti um alívio enorme! Estava autorizada a estar zangada.” Ana acende um cigarro. Neste momento está de baixa, tentou voltar ao trabalho várias vezes, é professora, mas não conseguiu dar aulas de novo, foram tentativas tão traumáticas que se deprimiu profundamente a seguir. “Só comecei a melhorar há um ano quando fiz uma psicoterapia. Não hesitam em colocar o dedo nas feridas, em destapá-las, e assim elas começa m finalmente a sarar”, argumenta.
Tais como, pergunto, com medo de estar a ser indiscreta, mas a Ana responde com a coragem que se lhe reconhece desde o primeiro momento: “Por exemplo, tenho mais dois filhos, um mais velho um ano do que a Mariana, o outro na altura tinha 15 anos. Filhos impecáveis, que se tornaram superprotetores, como é que uma mãe é capaz de lhes dizer ‘O que quero é que me deixem em paz’? Quem não passou por isto talvez se choque, mas o que percebi é que a minha vontade era de não ser mãe, porque o esforço de ser mãe para os meus filhos acentuava a ausência da minha filha. Quando alguém nos ajuda a perceber estas coisas a que não conseguíamos dar nome, quando percebemos que não são monstruosas mas processos normais, levanta-se um peso e começamos a aceitá-las, a aceitarmo-nos.” E talvez a entender outras que pareciam incompreensíveis, como por exemplo a incapacidade total para voltar a dar aulas: “Os nossos alunos são sempre um bocadinho nossos filhos”, diz. E eu, sem me conter, adianto: “Se não é mãe da Mariana, não é mãe de mais ninguém?” A Ana para por frações de segundos e acena com a cabeça: “Qualquer coisa assim.” E depois sorri, com uma pontinha de amargura: “Não é por mal, mas muitas vezes as pessoas chegam ao pé de nós e dizem-nos que temos de andar com a vida para a frente. Mas qual vida? Não há uma vida para continuar. Essa acabou definitivamente. Há que criar uma nova vida, mas antes disso é preciso descobrirmos quem passamos a ser, o que queremos...”
O resultado dessa pressão social, que odeia o sofrimento e tem medo da morte, é levar quem sofre a esconder o que sente, o que por sua vez impede de fazer o luto, defende:
“Um ano, um ano é o que nos dão para deixarmos de falar no assunto, e é porque é um filho, porque se for um pai ou uma mãe, ao fim de uns meses estão a perguntar porque é que ainda estamos tristes. Levei tempo a aceitar que não tinha de fazer nada porque os outros queriam. Esforçamo-nos para ir ao encontro das suas expectativas e depois vamos ainda mais abaixo.”
E como reagiu o pai? O luto de um homem é diferente do de uma mulher?, pergunto. Sem constrangimento, responde: “Temos formas muito diferentes de reagir, eu meto-me num buraco, viro-me para dentro, ele precisa de ação, e de um pretexto para gritar, para pôr para fora... Fazemos o luto cada um à sua maneira, por caminhos paralelos mas sempre de mãos dadas. Sei que há muitos casais que se separam em consequência de uma tragédia como esta, não queríamos ser um deles, não queríamos mais tragédias. Preocupamo-nos um com o outro, somos muito compreensivos um com o outro. Estamos bem.”
“Melhor a cada dia”, sorri. “Não sinto que a minha felicidade seja uma traição à Mariana, ela era a alegria em pessoa, mas quero ser feliz por mim, por todos os que ficaram.”
Como ajudar (conselhos de mães que sabem)
* É muito difícil resistir a comparar aquilo pelo qual os pais estão a passar com os nossos próprios lutos. É claro que a sua experiência de dor vai ajudá-la a empatizar com a dor daqueles pais, mas não imagine conhecê-la. Isso não significa que a sua presença e as suas palavras não ajudem, porque ajudam.
* Traga uma refeição e disponha-se a ouvir.
* Não use o pretexto de não saber o que dizer, para ficar calada ? se não souber o que dizer, diga isso mesmo, mas não vire costas com um “Não sou capaz!”.
* Se conhece alguém que passou pelo mesmo, proponha pô-los em contacto com os pais que acabaram de perder um filho.
O suicídio não é uma escolha (mas dói como se fosse)
Em Portugal, todos os anos, os pais de cerca de 50 adolescentes enfrentam a mais terrível das notícias: a morte por suicídio de um filho. À dor da perda, soma-se a perplexidade e a inescapável culpa, explica Carlos Braz Saraiva, um dos maiores especialistas nesta área. O psiquiatra não tem dúvida de que estes pais e estas famílias precisam de ajuda para entender o que aconteceu, para que não adoeçam também. E para superar o estigma que ainda leva a esconder a verdade. “Sabe-se que 90% dos casos de suicídio estão ligados a uma doença mental. O suicida tem uma mente muito doente, ao ponto de hoje se falar de ‘cérebro suicida', e os pais sentem algum alívio quando percebem que não resulta de uma escolha. Aquele ato desesperado foi a única forma que o filho encontrou de pôr fim a um sofrimento atroz”, explica. Está seguro de que, infelizmente, é uma “tortura para a vida”, mas que pode ser atenuada quando os pais entendem que, de facto, não poderiam ter feito nada. “Há pais que acabam por encontrar uma certa paz quando percebem que os filhos desejariam que continuassem a fazer as coisas que lhes dão prazer, que os filhos os quereriam ver felizes”, diz Braz Saraiva.
Livros que libertam
Numa primeira fase não há concentração que chegue para os ler, mas um dia pega-se no livro que alguém ofereceu e começa-se a ler. E a surpresa de perceber que outros sentiram o mesmo e sobreviveram traz consigo um grande alívio.
* "Os anjos não comem chocolate", da jornalista Andreia Sanches
Na capa, a “provocação” – “Sou uma mãe que também perdeu um filho. Quero dizer-lhe que ainda vai ser feliz.” Dezanove histórias que prestam homenagem à associação A Nossa Âncora, criada por Maria Emília na sequência da morte da sua filha.
* "Defilhar: Como viver a perda de um filho", de José Eduardo Rebelo
Foi escrito por alguém que perdeu a mulher (grávida) e as duas filhas num acidente de viação. Criou o termo Defilhar, ao constatar que não havia nome para um pai ou uma mãe a quem morre um filho.
à associação A Nossa Âncora, criada por Maria Emília na sequência da morte da sua filha.
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