CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 CRIANÇAS EM STAND BY
Publicado em: 08/02/2017
Dois anos depois da reportagem Não amam nem deixam amar, em que a Máxima investigou a situação do acolhimento e da adoção em Portugal, depois de novas leis e de discursos sem fim em favor das crianças, voltámos a querer entender o que não se faz por estas crianças que são nossas!
POR CARLA MARINA MENDES E ISABEL STILWELL

amentamos, mas estas não são as histórias raras que os jornalistas desencantaram para cativar audiências ansiosas por sangue e desgraça. Estas são histórias comuns, num universo de mais de 11 mil crianças que o Estado tem a seu cargo porque as famílias biológicas as puseram em perigo e que, na maioria dos casos, também não consegue proteger. São a ponta do icebergue de uma realidade que não precisa de mais leis, mas de mais vontade de as aplicar. De um mundo onde há muitos heróis, que dão tudo por tudo para reconstruir famílias e sarar as feridas destes meninos, mas também de vilões, que permitem que os preconceitos e a indiferença tramem as crianças.
Esta é a realidade que a Máxima quer questionar e denunciar. Uma e outra vez, todas as que forem necessárias até que algo mude.
* Todos os nomes das crianças e dos pais são fictícios.

Janeiro de 2015. Quando Nuno, vindo da escola, abre a porta da casa de acolhimento onde vive, Cláudia, de cinco anos, esgueira-se do sofá e corre para os seus braços. Nuno, olhos verdes num rosto sardento, pousa a mochila, que aos oito anos já pesa, e abraça-a. São meios-irmãos e chegaram juntos à instituição já há quatro anos, e raras são as visitas da mãe ou de outro familiar. Nuno encavalitava-se no muro todos os domingos, na esperança de a ver subir a rua, “mas ela nunca chega”, desabafava por fim desiludido. Cláudia só espera pelo irmão, nem um ano tinha quando a mãe a deixou. Na opinião de quem cuida deles e da equipa da Segurança Social que os acompanha, Nuno e Cláudia são, desde há muito tempo, crianças que preenchem todos os requisitos para a adoção, mas o juiz tem resistido. Acredita que se devem dar novas oportunidades à mãe.
Abril de 2015. A equipa está indignada com a decisão do tribunal. O juiz concorda finalmente que o regresso das crianças à mãe é impossível, mas decide que é preciso encontrar o pai de um e outro. Que nenhum deles conhece ou jamais viu. Nuno recebe a notícia com aflição.
Novembro de 2015. Pelo menos o pai foi coerente, recusando-se a aceitar a guarda do filho. Passaram cinco anos. O juiz autoriza que se procurem pais adotivos para os meios-irmãos e que sejam adotados separadamente. Nuno recebe a notícia com enorme ansiedade. Quer muito ser adotado, mas olha para todos os adultos que visitam a instituição com esperança: “Talvez também queiram levar a Cláudia”, confidencia, dividido. A Cláudia não lhe larga a mão. Tem agora seis anos, vive há cinco naquela casa, não quer ir a lado nenhum.
Dezembro de 2016. Nuno já tem uma família. Uma nova mãe, um novo pai e uma nova irmã, mas deixou a Cláudia. Visita-a e os pais adotivos garantiram-lhe que quando a Cláudia tiver uma família manterão o contacto. A equipa diz que Nuno floresce na nova família, que está alegre e seguro, que na escola os resultados são bons. Cláudia espera, mais fechada e introvertida. Nuno e Cláudia não são caso único no absurdo que contradiz tudo o que pregam as leis e o discurso politicamente correto. Não são caso único nem naquela casa, onde tiveram a sorte de viver, numa comunidade pequena e acompanhada, nem nos muitos outros centros que, de Norte a Sul, se esforçam, com melhores ou piores condições, por acolher um universo de 11 212 crianças e jovens. Nem serão o último, porque os números persistem em não diminuir — as estatísticas revelam que os problemas antigos não se resolvem e novos assumem proporções preocupantes. Embora haja dias bons, em que abrindo os jornais nos defrontamos com a decisão corajosa, porque ainda é preciso coragem, de um tribunal que bate o pé e recusa que a biologia condene mais uma criança à institucionalização perpétua, e bons exemplos que provam que, com a ajuda certa, é possível voltar a reunir famílias ou encontrar formas de acolhimento que respeitem melhor os interesses das crianças. Nos outros, a realidade destes meninos continua a envergonhar-nos.
O CASA 2015, Relatório de Caraterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens que é, desde há alguns anos, de apresentação obrigatória na Assembleia da República, tornou pelo menos mais difícil esconder o que se passa com as crianças a cargo do Estado (ou seja, de todos nós). E o que nos diz é que das 11 212 caraterizadas em 2015 (eram 10 903 em 2014), 8600 estão em situação de acolhimento, sendo que 2200 iniciaram a institucionalização nesse ano (25,6%) e 2612 a cessaram (23%). Para quem olha distraidamente para o relatório, o número dos que saíram das instituições até parece indicar pelo menos 2612 finais felizes. Mas o detalhe revela que 56% eram jovens entre os 15 e os 20 anos, ou seja, que saíram praticamente pelo próprio pé [literalmente, no caso de 3% caraterizados em “fuga prolongada”, que leva, eventualmente, ao arquivamento do processo (ver caixa). Apenas 14% dos que partiram tinham entre zero e três anos, 6% tinham quatro ou cinco, 10% entre os seis e os nove, uma pequenina percentagem dos que vivem em acolhimento. E, mais grave, todos eles, grandes e pequenos, estiveram demasiado tempo institucionalizados, alguns seis ou mais anos, comprovando que crescer longe de uma família continua a ser a norma.
Esmiuçando mais fundo, as notícias não são boas: os insucessos nas medidas de reunificação familiar são frequentes e as crianças e jovens saem do acolhimento para a ele regressarem a curto ou a médio prazo, uma e outra vez, repetindo e agravando o trauma do abandono. Quanto às que saem para integrar famílias adotivas, o número é, em 2015, muito baixo: num universo de mais de dez mil crianças à guarda do Estado, apenas 315 tiveram direito a uma família adotiva, menos 32 do que em 2014.

CAIXA
O que leva à instituição
As razões são sempre mais do que uma, mas 60% regista falta de supervisão e acompanhamento familiar, 33% exposição a modelos parentais desviantes, 32% negligência de cuidados de educação, 30% por negligência de cuidados de saúde. Metade delas já tinham uma medida em meio natural.

CAIXA
Números em destaque (dados de 2015)
8600 crianças em acolhimento, mais 130 crianças face ao ano anterior (1,5%). Destas, 2202 (25,6%) iniciaram o acolhimento em 2015
826 crianças sem projeto de vida definido
882 crianças com projeto de vida de adoção (10,3%)
35% tinham entre os 0 e os 3 anos
15,4% entre os 4 e os 5 anos
25,6% entre os 6 e os 9 anos
9,9% entre os 10 e os 11 anos
11,6% entre os 12 e os 14 anos
2,2% entre os 15 e os 17 anos
315 crianças adotadas (menos 32 crianças do que em 2014)
Das 2612 crianças e jovens que cessaram o acolhimento,
174 ficaram entre 4 e 6 anos em instituições;
350 ficaram mais de seis anos

CRIANÇAS “CONDENADAS” A MAIS DE 12 ANOS DE INSTITUIÇÃO
A lei exige que nenhuma criança esteja numa instituição sem conhecimento e “licença” de um tribunal e os números de 2015 revelam que é assim para a quase totalidade. Cada uma é alvo de um Processo de Promoção e de Proteção, da responsabilidade da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens ou do tribunal, que decide se ficará entregue a um acolhimento familiar, residencial ou se será alvo de uma medida de confiança com a instituição com vista a futura adoção. O passo seguinte é definir-lhe um Projeto de Vida, que pode ter em vista a reunificação familiar, trabalhando a Segurança Social e os pais para que tal venha a ser possível, a Autonomização (escandaloso quando definido para crianças de seis anos, que vão esperar 12 para o pôr em prática!) ou a Adoção.
Os indicadores contam-nos que, em 2015, 10% das crianças ou jovens em acolhimento tinham um Projeto de Vida de Adoção delineado pelos técnicos competentes, mas ainda prévio à situação jurídica de adotabilidade. Destes, 40,5% eram crianças dos zero aos cinco anos, número que desce para 20% entre os seis e os 11 anos, situando-se nos 3% entre os 12 e os 15, num total de 882 criança ou jovens. Mas apenas quando o tribunal valida estes Projetos de Vida é que fica efetivamente decidida “a situação jurídica de adotabilidade da criança”. O que, em 2015, só aconteceu em 359 casos, número ligeiramente abaixo do verificado em 2014 (391). Só depois disso podem as equipas de adoção procurar, na lista dos candidatos, os melhores pais para cada uma destas crianças. No ano em análise, 315 foram integradas de facto em famílias adotivas. Mas faltam dados que ajudem a compreender o que realmente se passa a nível nacional: quanto tempo corre entre a definição do Projeto de Vida de adoção e a adoção em si? Que idades têm as crianças que encontram efetivamente pais adotivos? Quais as que ficam e porquê? Questões que a Máxima colocou ao Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social sem que tivesse obtido resposta. Como, aliás, já acontecera ao requerimento de Sandra Cunha, professora universitária, socióloga e membro da comissão política do Bloco de Esquerda (BE), com dez perguntas sobre o tema. Porque à primeira não foi de vez, a dose teve de ser repetida. “Entreguei novamente porque o primeiro não teve resposta.” E o mesmo aconteceu com o segundo.
Sem números, ficamos com a experiência de quem, no terreno, lida diariamente com estas questões. Isabel Pastor, diretora da Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), constata que há casos em que o tempo é demasiado, em que se levam quatro, cinco e até seis anos para chegar às decisões. “Se pensarmos numa criança de seis anos, é toda a sua vida; se pensarmos numa de 12, é metade e, portanto, sem dúvida que às vezes a decisão poderia ter sido obtida mais cedo, com ganhos para todos.” No entanto, Isabel Pastor acredita tratar-se de “uma decisão de tal forma grave, na medida em que implica um corte com a família biológica, que também se compreende que, em determinadas circunstâncias, os tribunais hesitem antes de aplicar a medida tão radical”.
Maria Perquilhas, que foi juíza num tribunal de família e menores e hoje ensina no Centro de Estudos Judiciários, segue com atenção a situação das crianças em Portugal e recorda que “o estudo do projeto de vida é demorado porque depende do estudo da família. É preciso que se conclua que a família natural não tem recuperação, que se quebraram os laços próprios da filiação”. E esta conclusão jurídica (art.º 1978 do Código Civil) “é de uma dificuldade extrema, porque carece de prova muito difícil”. E a tarefa não fica mais fácil, acrescenta, pelo “facto de o perigo em que as crianças se encontram ser detetado tarde (a maioria das vezes quando já frequentam algum equipamento escolar ou pré-escolar)”, remetendo “para situações e decisões em que se questiona a adotabilidade da própria criança e o sofrimento que a quebra dos laços com a família natural, que é disfuncional, que é negligente, mas que é a que conhece, lhe causa”.
Nas equipas da segurança social sente-se, no entanto, que para além da falta de recursos humanos para fazer este estudo da família, alguns tribunais não “confiam” nos pareceres dos técnicos, nem sequer dos peritos, pondo as suas convicções pessoais do que é a família ideal frente ao que consideram ser a experiência de quem, de facto, segue e acompanha as famílias e as crianças. Aqui, Maria Perquilhas argumenta que “não tem a ver com confiança, mas sim com regras da prova. A convicção dos técnicos não faz fé em juízo. Os técnicos têm de apresentar ao tribunal factos que permitam (ao juiz) a convicção íntima de que aqueles factos se provaram. Depois de se considerarem assentes por provados os factos é que se averigua se os mesmos permitem ou não decretar a medida de confiança com vista a futura adoção”.
O juiz conselheiro Álvaro Laborinho Lúcio, um dos pioneiros na defesa dos direitos da criança em Portugal, recorda que “o caminho no sentido de olhar a família como um espaço de afirmação e de respeito pelos direitos de cada um dos membros que a compõem ajudaria a olhar a adoção de uma forma culturalmente mais assumida, em termos sociais”. O que também facilitaria, defende, “as tomadas de decisão dos próprios técnicos, muitas vezes apanhados no meio de um caldo de cultura onde vêm conflituar os que se batem pela adoção como um direito fundamental da criança e os que persistem em considerá-la apenas como um instrumento de proteção da criança desprovida de meio familiar normal”.
Porque, defende, “quando a adoção é levada para o terreno da proteção da criança acaba por concorrer com a sua institucionalização, com o próprio acolhimento familiar ou até com o apadrinhamento civil. Estas sim, são formas de proteção, e importantes sempre que justificadas. Mas a adoção não! A adoção é fonte de família. Quando isto for entendido assim, muitas mais situações, hoje sem solução, serão certamente resolvidas em favor das crianças carecidas de família e em respeito pelo seu Superior Interesse.” (ver entrevista)

QUANDO REUNIFICAR SE TORNA UMA OBSESSÃO
Janeiro de 2012. Maria chegou ao acolhimento com meses, vinda diretamente da maternidade. Fez-se o berço, prepararam-se os biberões, a sua história tão semelhante à das outras duas crianças com menos de um ano que ocupavam o mesmo quarto. A mãe, pouco mais do que adolescente, emigrante sul-americana, alegou não poder ficar com a criança. A Segurança Social fica responsável por lhe dar apoio, para que em breve retome a bebé. A família está longe, mas promete ajudar.
Março de 2013. Um ano e três meses depois, Maria continua à espera da mãe. Ao seu lado tem agora uma irmã, deixada como ela logo na maternidade. O juiz ouve de novo a mãe, que justifica a ausência de visitas com a procura de trabalho, alegando que a família não lhe manda a ajuda prometida. E dá-lhe uma nova oportunidade. A equipa revolta-se com o representante do Ministério Público, o advogado das crianças, que perante isto fica em silêncio.
Janeiro de 2015. Maria tem três anos, a irmã vai fazer dois. Em novembro, o juiz impôs uma data à mãe. Diz quem esteve na sala que a mãe a aceitou “com menos convicção do que o juiz”. Na instituição, preparou-se a festa de despedida, a diretora confessa que com o coração pesado porque lhes parecia perigoso entregar-lhe assim as crianças, que nem a conheciam. Mas a hora passou e a mãe não apareceu, nem telefonou. Não veio também no dia seguinte, nem nunca mais. O tribunal não a consegue contactar.
Janeiro de 2016. Maria tem quatro anos, a irmã vai fazer três. Aguardam ainda uma decisão. Se é óbvio que todo o esforço deve ser colocado em reabilitar a família e apoiar os pais biológicos, a pergunta impõe-se: porque é que tantas vezes se insiste em mães e pais que manifestamente não têm condições para as acolher? Não por culpa própria — tantos foram também eles vítimas de maus tratos, abandonos e institucionalizações —, mas porque o que está em jogo é o supremo interesse da criança. Que aqui é o único que importa.
Maria Adelina Barbosa, da Faculdade de Psicologia e de Ciências de Educação do Porto, referiu, numa conferência sobre o tema, que “a reunificação familiar pode converter-se num objeto perverso (...), quando se trata de uma insistência que ultrapassa o limite da razoabilidade”, frisando que “de medida de proteção e preservação familiar, converte-se em medida de risco para a criança”. E os números do CASA não deixam dúvidas de que assim é para a maioria das crianças acolhidas pelo Estado. Maria Adelina Barbosa reforça: “A prática mostra a quantidade de crianças que se veem privadas de prosseguir a sua vida, atavicamente ligadas a uma família, que de família apenas preserva o tal laço biológico, mas em que a disfuncionalidade inviabiliza que se continue a considerar que se trata de facto de uma família.”
O número de crianças em instituições não deixa dúvidas de que a biologia não torna, só por si, famílias capazes de cuidarem dos seus filhos. Os números das reunificações tentadas confirmam que, em muitos casos, as crianças acabam cobaias de experiências trágicas promovidas pelos adultos que agora são responsáveis por elas. Em 2015, ocorreram 1291 reintegrações em meio familiar nuclear, mais 95 do que em 2014, mas a maioria regressa à instituição.
Maria Perquilhas confirma que “a lei determina que a prioridade seja a família natural ou biológica”, explica, justificando porque é nesta que se tem de procurar “quem tenha disponibilidade e competências para acolher a criança”. Mas reconhece que, “muitas vezes, o perigo encontra-se na sua família. Há pois que estudar a família e estudar os fatores que essa mesma família dispõe para poder ultrapassar a situação”.
Isabel Pastor tem esperança de que, com o Conselho Nacional para a Adoção, a que pertence, a definição e execução dos projetos de vida das crianças se torne mais rápida. Foi a nova lei da adoção, em vigor desde dezembro do ano passado, que criou este Conselho, “com o objetivo de introduzir maior rigor e uniformidade no encaminhamento de uma criança para uma família adotiva”, explica à Máxima. Depois de feito o trabalho dos técnicos, cabe ao Conselho validar esse mesmo trabalho. “Iniciou funções em 2016 e já foram feitas 26 reuniões ordinárias, tendo sido encaminhadas cerca de 300 crianças”, refere a responsável da SCML, que confirma que o processo se tornou, desta forma, mais célere. Isto embora os números que já se conhecem referentes ao primeiro semestre de 2016 não pareçam indicar grandes alterações. Vamos esperar para ver...

CAIXA
Distritos com mais crianças em situação de acolhimento
18,6% - Lisboa
17,9% - Porto
7% - Braga
Idades
0-5 ANOS - 1097
6-11 ANOS - 1563
12-17 ANOS - 4784
18-20 ANOS - 1156


CRIANÇAS COM UM CADASTRO PESADO
“Continua a manifestar-se uma divergência entre a realidade das crianças que estão em situação de adotabilidade e a pretensão dos candidatos à adoção”, afirma Isabel Pastor. “A maioria manifesta a sua disponibilidade para adotar uma criança dos zero aos três anos, sem problemas de saúde e uma só criança. Sendo que a maior parte das crianças a quem é aplicada a medida de adotabilidade tem mais do que três anos, às vezes tem problemas de saúde e muitas vezes irmãos que não convém separar.” E é esta divergência entre o que os casais pretendem e a realidade que, defende, “leva a que haja tempos de espera muito elevados”.
Mas quem são de facto estas crianças que, após o abandono dos pais biológicos, ninguém parece querer? Alexandra Lima, técnica superior da SCML, constatou que, todos os anos, 45 crianças ficam na lista sem resposta familiar adotiva, e decidiu analisar a situação de um grupo de 18 destas crianças para perceber o que tinham em comum. As conclusões arrepiam: a idade média destas crianças é já de 11 anos, mas o seu calvário não começou na véspera. Em média, a primeira intervenção social foi aos dois. Depois disso esperaram mais três na família, para acabarem institucionalizadas aos cinco, tendo já sete à data da decisão judicial de adotabilidade, sendo que o tempo médio de espera pela decisão de Adoção foi de quatro anos. “O maior constrangimento da adoção é o tempo da intervenção e definição do projeto de vida das crianças”, escreve a propósito.
Eduardo Sá, psicólogo, indigna-se quando fala na institucionalização destas crianças, “a que pomposamente se chama acolhimento”, e à forma como tantas vezes decorrem os processos de adoção. “À negligência e aos maus tratos que sofreram, e que começam muitas vezes durante a própria gravidez, somam um tempo largo de institucionalização absolutamente contraindicado, chegando ao momento da adoção com um ‘cadastro’ para o qual contribuíram a Segurança Social e os tribunais! É evidente que estes meninos, depois de terem passado pelos sofrimentos pelos quais nós, felizmente, nunca tivemos oportunidade de experimentar, funcionam como gatos escaldados. Nessas circunstâncias, não se vão vincular como se fossem de conta-quilómetros a zero. É mesmo ofensivo que alguém imagine uma coisa como essa.”
Estes pais adotivos e estas crianças precisam de muito apoio, mas em muitos casos não é o que recebem, embora toda a gente esteja pronta a apontar-lhes o dedo. Eduardo Sá fala de experiência feita: “Muitos destes candidatos fazem um ror de entrevistas em que lhes é perguntado tudo e mais alguma coisa, processos longos e sem fim, e depois pegam-se nestas crianças, algumas com um cadastro pesadíssimo, depositam-se no colo e dizem: ‘Então até depois!’ E isto não é uma atitude séria.”

APADRINHAMENTO CIVIL: QUANDO SE INTROMETEM DE MAIS
Beatriz cresceu numa instituição. Foi retirada à mãe à nascença, por maus tratos e negligência, como já o tinham sido antes vários dos seus irmãos, recebendo apenas visitas vigiadas da mãe duas vezes por semana. Tinha no entanto uma luz ao fundo do túnel: passava todos os fins de semana e as férias com Susana e Rui, uma família amiga da instituição onde vivia.
O casal não procurava filhos biológicos, já tinha dois, e motivava-os apenas partilhar a família com quem a não tinha. Durante cinco anos todos eles estreitaram laços com Beatriz, e Beatriz com eles, e devolvê-la à instituição aos domingos à noite tornou-se cada vez mais doloroso. Para eles, e sobretudo para ela. Por isso, quando a instituição propôs que ”apadrinhassem” Beatriz, então com sete anos, ficaram radiantes. Explicaram-lhes que o processo teria de ser aprovado por um juiz, que concede confiança à família durante um período experimental de seis meses e estranharam quando lhes foi dito que o processo seria acompanhado por uma equipa diferente da que seguia o caso de Beatriz desde criança, uma equipa de um Centro de Aconselhamento Familiar e Apoio Parental (CAFAP), mas dispuseram-se a trabalhar com ela.
Num primeiro embate perceberam que se pretendia que Beatriz passasse a pernoitar uma vez de 15 em 15 dias com a mãe biológica. “Todas as tentativas de reintegração familiar tinham sido desastrosas e a mãe só podia ver a filha numa sala vigiada por técnicos. Como é que, de um dia para o outro, se ia deixá-la numa mãe considerada repetidamente incapaz, num ambiente de maus tratos? E éramos nós, a família que a acolhia e protegia, que era agora obrigada a ir entregá-la a casa da mãe, deixando-a num ambiente perigoso”, pergunta-se Susana, o rosto tenso pelo desespero.
Reagiu como reagiria com qualquer criança que se quer proteger, protestou junto do juiz, mas sem resultado. Mas era apenas uma das obrigações, porque havia outras que se destinavam, na opinião de quem acompanhava o caso, a esquecer tudo o que fora feito para trás pelos técnicos anteriores (“Nem quero ler o processo”, terá alegado) a fim de “reunir mãe e filha”, embora separá-las nunca tivesse sido a intenção de Susana. “Dói muito”, conta. “Nunca pensei que se tornasse um pesadelo total para a nossa família, destruindo a Beatriz e a todos nós no processo.”
Rapidamente começou o inferno: de um lado a mãe biológica, que ligava a todas as horas exigindo falar com a filha, algo que na instituição não podia e nem fazia, incitando-a a “fugir dessa gente”. Mudaram horários, mudaram rotinas, por exigência da mãe biológica e da equipa de acompanhamento. Foram muitas as queixas de Susana e Rui, ignoradas pelos técnicos e pelo juiz, que não respondeu às cartas enviadas. O CAFAP reclamou contra o quarto da menina, contra a psicóloga que a seguia desde cedo e insitiu que o casal, junto há 20 anos, fosse acompanhado por uma terapeuta. “O meu marido estava de cabeça perdida, os meus filhos, que sempre adoraram a Beatriz e a tratavam com o maior carinho, começaram a ficar zangados.”
No meio de tudo isto, Beatriz era, diz Susana, “a única que não dava problemas”. Mas nem ela resistiu. “Quando nos aproximávamos do fim de semana em que a íamos levar à mãe, perguntava se não podia antes ir para a instituição. Tinha medo. As noites, contava-nos depois, eram terríveis. Saíam de casa e andavam atrás da mãe. Bebia-se muito e os ânimos exaltavam-se, havia discussões e gritaria. Mas quando eu falava com a técnica, a resposta era sempre: ‘Isso não foi, com certeza, assim.’ E eu e a minha família, que acolhemos aquela menina porque a amávamos, fomos transformados em maus da fita. Acusados de querer quebrar laços biológicos.”
Novas cartas de SOS para o juiz, que se comprometera a acompanhar o caso, de novo nem uma resposta. Até ao dia em que, com grande desgosto, Susana e Rui decidiram que não podiam continuar com Beatriz em casa. Não por eles, mas por ela. “Beatriz tornou-se silenciosa, pedindo insistentemente para voltar à instituição”, recorda Susana. Quando comunicaram ao tribunal a “devolução” da criança o juiz reagiu pela primeira vez. Pediu-lhes que reconsiderassem. Sugeriu voltar a reunir-se com eles. Mas já era tarde de mais. No dia em que Beatriz saiu de casa não se despediu sequer dos irmãos, não deu um beijo, nem um abraço, caminhou fria em direção à porta de uma (outra) instituição. Susana não esconde o desespero: “Foi tudo pior para ela, ensinaram-na a não amar, a não se prender a ninguém, a não acreditar em ninguém”, desabafa, a raiva difícil de conter. Meses depois, decidiu que afinal não quer cruzar os braços. Um telefonema de Beatriz bastou para que voltasse a querer lutar por ela.

CAIXA
Adolescentes, bomba relógio
Metade das crianças e jovens em instituição têm mais de 12 anos, e muitos registam problemas de comportamento, toxicodependência, saúde mental, consumo esporádico de estupefacientes, fugas cada vez mais frequentes (só em Lisboa, em 2015 foram reportadas 461, muito mais do que as 265 do ano anterior), que se refletem num insucesso escolar brutal (celebrem-se os 8% que ingressaram no ensino superior em 2015). O CASA pede uma intervenção mais cedo, mais diferenciada, com mais respostas de acolhimento e modelos de intervenção eficazes. Mas teme já não ir a tempo desta “geração”...

FAMÍLIAS DE ACOLHIMENTO: SOLUÇÃO OU ILUSÃO?
“Levei-lhe um presente, foi um livro de pintura e uns lápis de cor e marcadores. Quando viu o embrulho, ficou radiante. Foi um sorriso que jamais hei de esquecer.” A recordação fica com Sandra que, juntamente com o marido, Paulo, decidiu acolher Susana, uma criança de cinco anos. Na altura não tinham filhos, mas não foi por isso que decidiram tornar-se família de acolhimento. Susana “chorou ao chegar a casa, dizia que queria a mãe”, conta Sandra. “E depois, quando foi dormir, quis que um de nós estivesse à beira dela durante a noite”, acrescenta, recordando os primeiros momentos de dez meses de convívio. Uma experiência que, garantem, “valeu muito”. E que teve um fim, com a reintegração da criança na família biológica. “
Jaime e Marta viveram uma experiência semelhante. Quando Ana chegou, tinha preocupações de adulto. “A mãe tomava medicação, precisava de acompanhamento e, de repente,é uma criança de cinco anos que tem de ser a adulta”, conta Jaime que, juntamente com Marta, acolheu a menina em casa. Durante os dez meses que esteve com o casal, “acabou por brincar, a coisa mais simples”, recorda Marta. No entanto, “a mãe estava sempre muito presente e era uma falta enorme”, afirma Jaime. Uma realidade que lhes serviu de aprendiza- gem. A despedida, que aconteceu dez meses depois, com o regresso
à família biológica, não foi triste. “A criança ia tão feliz que para nós foi uma alegria entregá-la à vida que ela queria.”
A experiência destas duas famílias é muito positiva, como é muito empenhado o trabalho da Associação Mundos de Vida, que as recrutou, criando uma bolsa de famílias. Mas embora sucessivos governos tenham tornado pública a sua aposta nas famílias de acolhimento, a verdade é que são cada vez menos os candidatos Em 2015, apenas 299 crianças (3,5% do total) estavam integradas em famílias de acolhimento, quase todas do Norte. A culpa parece ter sido da mudança da lei. “Se antigamente muitas das famílias de acolhimento eram constituídas por familiares da criança, essa possibilidade deixou de existir, o que fez com que se reduzisse imenso o número”, confirma a socióloga Sandra Cunha.
Mas o problema pode ir mais fundo, diz. “Há falta de consenso na academia. Há quem defenda que é mais uma violência para a criança, porque nunca poderá ser adotada por esta família. E que há o estabelecimento, que é impossível de impedir por parte das crianças e dos adultos, de um vínculo que depois se vai quebrar.” Isabel Pastor, da SCML, fala na falta de investimento no acolhimento familiar, que o tornou “residual, ao contrário do que se verifica noutros países europeus, em que a maior parte dos acolhimentos se fazem em famílias e não em instituições”. Mas acredita que o panorama vai mudar, “com o impulso dado pela alteração à lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que veio determinar a priorização do acolhimento familiar, sobretudo no âmbito de crianças dos zero aos seis anos”.
De facto, em setembro de 2015, a Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo sofreu uma alteração e, no seu artigo 4.º, passou a constar a importância da prevalência da família. Contudo, quando questionado, o Centro Distrital da Segurança Social de Lisboa limitou-se a responder que não está a proceder à seleção de famílias de acolhimento. E os números indicam que não é fácil recrutá-las. Isabel Pastor reconhece que “não havendo candidatos, não pode haver acolhimento. É preciso investir na captação de famílias, o que implica também a alteração do próprio modelo”.
São vários os requisitos que a família de acolhimento tem de cumprir, tantos que a grande maioria recua. Que a lei terá de mudar prova-o a falta de casais, mas exceto como uma solução para um muito curto espaço de tempo, será por aqui o caminho?

CAIXA
Ruturas constantes
O CASA indica que 36% das crianças já estiveram pelo menos em mais do que uma instituição: 80% vão na segunda resposta, 15% na terceira e 5% na quarta, quinta ou sexta.
“Além de inquietante, por supor que estas crianças e jovens ao longo do seu crescimento foram expostas a várias mudanças e sujeitas a inúmeras ruturas, permite prever as sérias complicações relacionais e de vinculação que isso acarreta”, lê-se no relatório.
Melhor não podia ser dito. Mas há dois anos dizia-se o mesmo..


ÁLVARO LABORINHO LÚCIO,
juiz conselheiro, batalha há anos pelos direitos das crianças.

“Radical é deixar crescer uma criança sem família” Pode um juiz, quando se trata do Superior Interesse da Criança, pôr em causa o parecer dos técnicos?
A figura do Superior Interesse da Criança terá, evidentemente, um significado de natureza técnica, onde o jurídico tem lugar de relevo, mas onde nenhum saber reúne todos os elementos necessários para uma compreensão integral do conceito. É, pois, fundamental compreender-se que, afinal, quem decide é o juiz, mas também que tal decisão apenas será correta e justa se tomar em linha de conta os contributos decisivos de outros técnicos.

Há muitos técnicos que falam da necessidade de encontrar pais adotivos extraordinários. Concorda com esta ideia?
A família à qual a criança tem direito não é, necessariamente, constituída pelos seus progenitores. Estes, se não se assumirem como família capaz de amar o ser biológico a quem deram origem, ou se, por outras razões, o não respeitarem nos seus mais elementares direitos, não passam de progenitores. A criança, nessas circunstâncias, não tem família. Não precisa, pois, de “outra”. Precisa, isso sim, de uma que o seja. É portanto aqui que surge a adoção como fonte dessa família. Não há que procurar “pais terapêuticos” nem pais excecionais. Basta encontrar pais, com todo o risco que o nascimento de um filho ou de uma filha sempre comporta, sejam estes biológicos ou não.

Retirar uma criança aos pais é uma medida radical. Mas deixá-la passar a vida inteira numa instituição é o quê?
Radical, no sentido não virtuoso do termo, é manter e deixar crescer uma criança sem família, acrescentando ao perigo que determina a retirada aos progenitores o risco de uma institucionalização sem qualquer horizonte familiar.

A formação dos juizes mudou, as leis mudaram, mas os números das crianças em acolhimento são os mesmos e os das adoções mais baixos. Alguma explicação?
Há várias, desde os entraves que a própria lei coloca, aliás, nem sempre injustificados, até a um conjunto de interpretações restritivas que dela se faz por parte dos vários técnicos e instituições, passando por uma persistente ausência de uma visão democrática da organização familiar.

Como é que se faz para conseguir tomar estas decisões tão radicais? A tentação de adiar, de esperar que se resolvam por si, deve ser enorme, não?
Se uma decisão radical não deve tomar-se por ser radical, também não será por ser radical que ela não deve assumir-se. E aí sim, a vontade, a determinação, a aceitação do risco que ela comporta e a consciência das respetivas consequências e sua correspondente responsabilização desempenham, sem dúvida, um papel decisivo.