CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 UMA LIÇÃO NAS TRAGÉDIAS - MARÇO 2017
Publicado em: 01/03/2017
PORQUE SE HÁ UMA LIÇÃO NAS TRAGÉDIAS, MESMO NAS DOS OUTROS, É A DE QUE NÃO NOS PODEMOS DAR AO LUXO DE IMAGINAR QUE ATÉ AS MELHORES HISTÓRIAS NÃO TÊM UM FIM.

Há momentos em que apetece virar as costas a tudo, tapar os ouvidos para não ouvir mais tristezas, cobrir o coração com fita isoladora, para que não entre em fibrilação à conta do sentimento de impotência perante o sofrimento dos outros. Perante as perdas dos outros. Momentos em que nos apetece fugir enquanto podemos, e sem olhar para trás, sabendo que um dia a bomba nuclear cairá mais perto, e aí não haverá plano B que nos acuda.
Mas quando damos por nós num modo de piloto automático, a acenar que sim com a cabeça perante a maior calamidade, procurando convencer-nos de que não sentir é o único estado possível, odiamo-nos, como se tivéssemos ficado robots. E toma-nos o medo de que crescer traga consigo uma indiferença fria e egocêntrica. Que o passar dos anos nos sitie por trás de muralhas que já não conseguimos deixar cair.
Aí recuamos. E devagarinho percebemos que mesmo a morte, a dor mais irremediável, só por si reforça o valor da vida, e que o único antídoto para o sofrimento que nos rodeia é a gratidão. Gratidão por estarmos vivos, por ainda estarmos vivos. Gratidão pelas pessoas que partiram e continuam vivas dentro de nós, mas também por aquelas que nos importam muito e continuam vivas ao nosso lado. E que, objetivamente, estão em desvantagem – o amor tem bem mais dificuldade em resistir à vida do que à morte, em sobreviver ao desgaste do dia a dia, ao confronto direto, à falta de tempo e atenção, à desilusão das expectativas criadas.
De tudo isto fica uma sensação de urgência. Urgência de usufruir o momento, de viver mais intensamente, de aproveitar cada pessoa, cada primavera, cada ano em que vemos as folhas nascerem nas árvores, tão verde-alface que apetece trincá-las, cada fim de noite em que, juntos, vemos uma série na televisão, os segundos antes de adormecer em que estendemos a mão para quem dorme ao nosso lado e a inspiração profunda quando acordamos e ainda está ao nosso lado, cada momento em que os nossos filhos ou netos nos trepam para o colo e lá se aconchegam ou entre amigos rimos até já nem sabermos porquê. Porque se há uma lição nas tragédias, mesmo nas dos outros, é a de que não nos podemos dar ao luxo de imaginar que até as melhores histórias não têm um fim.
Mas como fazê-lo sem culpabilidade, sem remorsos por termos ainda aquilo que aqueles que tanto amamos não têm? Como é que superamos a vontade de pedir desculpa pela nossa felicidade que, tememos, quase os possa ofender ou mesmo zangar? Como se os tivéssemos abandonado, não querendo saber da sua dor – quando queremos tanto!
Talvez, só com a convicção de que se conseguirmos encontrar a alegria, trazendo-a connosco, mesmo que por vezes escondida no fundo de um bolso fundo, teremos mais para dar. De que só carregando as nossas próprias baterias, poderemos ajudar a carregar as dos demais. E uma outra, que custa pensar e mais ainda escrever, mas que não pode deixar de aqui ficar, porque provavelmente contém a chave de tudo o resto: só nos podemos dar verdadeiramente àqueles que acreditamos que nos querem ver felizes. No dia em que imaginarmos (e, às vezes, é só mesmo um truque da nossa fantasia) que, por muita justificação que tenham, nos querem roubar a vida, o ressentimento acabará por estragar tudo. Complicado? Muito mais simples dito que feito, com certeza. Mas quem disse que viver era fácil? Pergunta que só tem realmente resposta quando nos recordamos que a opção é morrer.