CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 AS NOSSAS FALHAS - AGOSTO 2017
Publicado em: 01/08/2017
AS NOSSAS MÃES ATÉ PODEM TER SIDO GENEROSAS CONNOSCO, MAS COMO ERAM COM ELAS MESMAS? COM QUE DOSE DE COMPAIXÃO SE AVALIAVAM, COMO REAGIAM PERANTE AS SUAS PRÓPRIAS FALHAS? PORQUE SERÁ SEMPRE ESSA A NOSSA BITOLA.

Somos muito mazinhas connosco próprias, mesmo más! Não nos perdoamos nenhuma falha, não baixamos a barra da exigência seja onde for, sempre certas de que podíamos ter ido mais além, feito melhor. Dia e noite vigiamo-nos, o radar ligado em todas as frentes, mais disponíveis para nos autuarmos do que o mais embirrento dos polícias.
O mais absurdo é que não nos falta compaixão para os outros. Estamos sempre, e genuinamente, numa de “ah coitadinho, mas a culpa não é tua” e dispostas a argumentar em sua defesa até perdermos o fôlego. Para os outros, as circunstâncias têm sempre atenuantes, o suficiente bom chega perfeitamente, as falhas são todas compreensíveis, mesmo aquelas que nos afetam diretamente e não há nada que não tenha remédio. No caso dos outros, digo bem, porque em causa própria somos implacáveis.
Quando alguma coisa corre mal na nossa vida, tornamo-nos em juízes sem coração. O dedo apontado em nossa direção, seja porque o carro avariou, um namorado deu à sola, os filhos responderam torto, magoando-nos, a colega de escritório, mais uma vez, empilhou o trabalho dela na nossa secretária. Num primeiro segundo até espingardeamos, mas raramente pedimos responsabilidades. Invariavelmente, voltamos a agressividade para dentro, colocando-nos no epicentro do problema. “Estúpida, devia ter levado o carro à oficina, comprado uma lingerie mais sexy, tirado um curso de sushi, de que ele gostava tanto, e se o miúdo é mal-educado é porque o eduquei mal, cabia-me ter berrado mais, ou talvez menos, escutado com redobrada atenção ou feito ouvidos de mercador” ? tudo e o seu contrário serve para nos autoflagelarmos.Não é que seja uma desvantagem ter capacidade de autoavaliação, perícia para entendermos onde erramos e o que pode ser melhorado. Não é. Ao assumirmos o nosso destino, assumimos que temos controlo sobre a nossa vida, poder para decidir o que queremos fazer dela. E isso é bem melhor do que imaginarmo-nos marionetas em mãos alheias, conformando-nos a que a nossa existência se desenrole ao sabor de forças exteriores, sem que nos seja dada a última palavra. O problema é apenas quando o espírito crítico reencarna em inquisidor, condenando-nos com crueldade e frieza.
Mas porque raio reagimos assim e como podemos aprender a ter mais compaixão em causa própria? Se calhar, temos mesmo de regressar no tempo, tomando consciência de como as crianças imitam e incorporam dentro de si os exemplos das pessoas que lhes servem de referência, como tornam suas as normas com que foram educadas. Dito de outra forma, as nossas mães até podem ter sido compreensíveis e generosas connosco, mas o que importa agora é perceber como eram com elas mesmas, porque é essa a nossa verdadeira bitola. Com que dose de compaixão se avaliavam, como reagiam perante as suas próprias falhas, será que não se obrigavam, como nós hoje fazemos, a estar em todo o lado e a chegar a todos? Como as vimos reagir perante as injustiças de que eram alvo, mas também quando era preciso encontrar uma solução para um problema ? chegavam-se sempre à frente, por exemplo acudindo aos filhos e à sogra, desresponsabilizando o marido? E como julgavam as mulheres que não eram como elas, que comentários escutámos àquelas que trabalhavam fora, não tinham o jantar pronto a horas e por aí adiante? São, decididamente, estas as primeiras perguntas que nos temos de colocar, porque é nas respostas que encontraremos os contornos deste papão, ou grilo, ou superego, ou o que lhe quiserem chamar, que habita a nossa esquadra interna e nos ameaça constantemente com prisão.
À medida que revisitarmos a nossa infância e adolescência e trouxermos à luz as razões próximas da nossa autoexigência, vamos conseguindo analisá-las com a cabeça e o coração do adulto que somos agora, deixando cair as que deixaram de fazer sentido. Aos poucos, acreditamos também que o amor dos outros não depende da nossa perfeição. Percebemos que, afinal, podemos ser melhores pessoas se formos capazes de fazer valer os nossos desejos, até porque, secretamente contrariadas e zangadas, acabamos por cobrar caro: melhores mães sem estarmos constantemente disponíveis para os nossos filhos, profissionalmente mais competentes se abandonarmos a capa de bombeiro para nos tornarmos, aos bocadinhos, na pessoa capaz de colocar limites, incitando os outros à autonomia.
A “cura” não é imediata, exige trabalho e dedicação, por vezes a ajuda de um terapeuta que oriente o processo, mas nos momentos de recaída não se esqueça de que o investimento que faz na compaixão por si mesma é simultaneamente um investimento na felicidade das suas filhas e netas. Libertando-se a si, liberta-as também a elas.