CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 QUANDO FAZEMOS UM FILME - SETEMBRO 2017
Publicado em: 01/09/2017
UMA PALAVRA QUE NOS MAGOA OU UM GESTO QUE INTERPRETAMOS COMO DE INDIFERENÇA ABREM UMA FERIDA QUE AFINAL NÃO ESTAVA SARADA, PROVOCANDO-NOS UM DELÍRIO QUE PÕE NO CHINELO A MAIS MEDÍOCRE DAS TELENOVELAS MEXICANAS.

Toda a gente faz filmes na cabeça, longas e curtas-metragens, dramas, tragédias ou comédias, consoante o momento. Geralmente, temos consciência de que, além da protagonista principal, somos também argumentistas e produtoras e isso permite-nos manter a consciência da distância que vai entre o que se passa no ecrã da nossa cabeça e a realidade.
Choramos e rimos, mas conseguimos perceber que tudo aquilo é um filme, nada mais do que um filme.
Ou seja, podemos pendurar o chefe de pernas para o ar depois de uma discussão acesa em que o derrotámos com a mais brilhante das argumentações, mas quando entrarmos no escritório não nos espantamos que esteja sentado à secretária como de costume, sem sinais da tortura a que o sujeitámos. Idem aspas para mães e sogras – por muito que a vitória tivesse sido retumbante no nosso palco interior, temos o bom senso de não as olhar sobranceiramente, conscientes de que não sabem que nos deram razão minutos antes do pano descer.
Estes filmes caseiros fazem bem a tudo, permitem a catarse das nossas raivas e desencontros e deixam-nos mais sossegadas. Pior, pior são os outros, as tragédias de faca e alguidar em que mergulhamos de tal forma por inteiro que perdemos de vista o teleponto. Os especialistas devem chamar-lhe psicose ou outro nome retirado de um manual de doenças mentais e de facto assemelha-se certamente a alguma forma de loucura em que a alucinação passa por verdade absoluta.
Nem sempre sabemos dizer qual foi a faísca que iniciou a rodagem, mas invariavelmente partiu de alguém que amamos profundamente. Uma palavra que nos magoa de forma inesperada ou um gesto que interpretamos como de indiferença abrem uma ferida que afinal não estava sarada, provocando-nos um delírio que põe no chinelo a mais medíocre das telenovelas mexicanas.
Embora com nuances provocadas pelas inseguranças pessoais de cada um, o guião segue invariavelmente assim:
Take 1: “Não gosta de mim, aliás nunca gostou. Não sou a pessoa certa para ele, merecia melhor, alguém que saltasse da cama de manhã com um sorriso nos lábios, em lugar de se voltar para o outro lado e adormecer; uma mulher com menos dez quilos, ah já sei, daquelas que correm 20 quilómetros antes do pequeno-almoço. Sim, sim, estou a vê-la, a convidá-lo para beber um copo em lugar de se enroscar numa manta no sofá a ver uma série na televisão. Coitadinho, se eu o amasse realmente deixava-o ir.”
Por esta altura choramos copiosamente. De pena de nós mesmas, incapazes de aceitar que a reação é desproporcionada, que talvez as intenções do pobre não sejam aquelas. Enxugamos os olhos à manga e avançamos para o Take 2: “Mas se é assim porque é que ele não me diz? Porque é que não tem a coragem de acabar comigo, ponto final!”
Que desencadeia imediatamente o Take 3: “Ah, agora é que percebo tudo, quer irritar-me para que seja eu a ficar com o ónus da separação. Pronto, está explicado porque usa um sapato de cada cor e nunca põe a tampa na pasta de dentes. Cobarde!”
Inspiramos fundo, os olhos vermelhos, a respiração acelerada. Completamente alheadas do facto que fomos nós mesmas a escrever o argumento, planeamos o contra-ataque num Take 4 de antologia. “Também não preciso dele. Faço as malas e ponho-me a andar, pouco me importa se for para um T0 sem banheira, e se ele julga que não sou capaz de arranjar um contabilista para me fazer o IRS, está muito enganado.”
No fundo do poço, sentimo-nos as mais desamparadas das criaturas. Drenadas da mais pequena réstia de energia, como se nos tivessem roubado a alma.
Em retrospetiva tudo parece encaixar, dando forma a uma intriga que vem de longe. A um destino inelutável. E aí o filme dá uma reviravolta e na cena seguinte procuramos desesperadamente o colo de quem, na nossa imaginação, nos magoou. Como uma criança pequenina que se acolhe aos braços da mãe com quem está zangada porque desconhece outra forma de apaziguamento.
Chegados aqui, há dois finais possíveis: ou ele nos rechaça na sua legítima perplexidade e o filme acaba mal ou é, de facto, o herói da história e mesmo sem perceber nada do enredo, aperta-nos contra si, sossegando-nos, e o “Fim” surge ao som de uma canção de amor, emocionando o mais empedernido dos espectadores. Mas acabe de uma ou de outra maneira, é certo que saímos todos da sala sem resposta à pergunta que se impõe: “De onde vem uma tristeza tão profunda?”