CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 O FRASCO DAS MEMÓRIAS
Publicado em: 01/03/2017
As cenas voltam, tão vivas como se estivessem a acontecer, o espanto de que momentos tão antigos ainda permaneçam tão presentes - tanto em mim, como nelas

Não vivo sem banhos de imersão. Como há pessoas dependentes de soporíferos, eu preciso de descansar em banho Maria antes de me atrever a ir para a cama, a água quente a relaxar os músculos, a cabeça a navegar por um bom livro, desligando-se aos poucos da realidade.

Normalmente o resto da casa já dorme, e sinto-me finalmente com direito ao recreio, sem complexos de culpa por não estar a trabalhar ou a fazer outra coisa produtiva e útil. No silêncio da noite vou recarregando as baterias, enquanto ouço a chuva lá fora, e me sinto grata, também por ter um teto... e uma banheira.

Mas agora, ao lado do livro, do bloco de notas e das canetas, do champô e do gel, tenho um “Frasco de Memórias”. A Ana e as gémeas ofereceram-mo no Natal um frasco de doce pintado por fora que guarda dezenas de memórias, cada uma inscrita num pequeno cartão retangular, na caligrafia do seu autor, assinadas Ana, Minho ou Mana, conforme o caso. Todos os dias tiro de lá duas ou três recordações, e o coração parece que para por uns instantes, para voltar a bater, acelerado.

“Pequeno-almoço na cama com a avó”, diz um, “O circo de Mira”, diz outro, “Ir ver as ovelhas”, “Roupa que nós gostamos”, “Cinema com a avó e vomitei”, escrevem. E as cenas voltam, tão vivas como se estivessem a acontecer, o espanto de que momentos tão antigos ainda permaneçam tão presentes — tanto em mim, como nelas. Os factos mas também as emoções que os acompanharam, mesmo quando são agridoces como quando saímos do cinema a correr porque a Minho estava maldisposta. Foram momentos só nossos e que elas são capazes de traduzir para o papel. Para guardar para sempre neste frasco, e noutros que hão de vir.

De vez em quando encontro uma memória da Ana – “Irmos comer torradas, enquanto o mano na explicação”. Até eu já quase me esquecia daqueles fins de tarde em que ela não tinha mais de quatro ou cinco anos e aproveitávamos estar as duas sozinhas para ir ao Muchacho, no Guincho, ver as ondas da janela. “O abraço no fim da festa do meu casamento”, uma Ana de 21 anos, a minha filha aos meus olhos ainda tão pequenina, a escolher uma vida dela; “o abraço no fim do meu concerto no CCB”, como rebentei de orgulho, depois de a ver cantar.

Outras mais íntimas, que imaginei que nem sabia que tinha, o pensamento a martelar, “Terei sido a melhor mãe que podia ter sido, magoei-a tantas vezes sem querer”. É tão mais difícil ser boa mãe, do que boa avó. Agora é tão mais fácil acertar, porque têm a mãe e o pai na primeira linha. Menos confrontos, menos conflitos, menos gritos e menos cansaço, o que resulta em menos erros. O que é bom para acabar bem na fotografia.

Tiro um último pensamento, como quem jura que não come nem mais um quadrado de chocolate. “O cheiro da sua almofada”, escreve a Ana. Há dias, a Carmo, aconchegada o meu colo disse-me “Gosto tanto do teu cheiro”, “Cheiro a quê”, quis saber, “A avó”, respondeu-me ela. E acrescentou: “É um cheiro muito diferente do cheiro a mãe!” E é.
Espero que no próximo carregamento de memórias, este momento regresse espontaneamente com a sua assinatura, significa que foi tão importante para ela como foi para mim — mas pensando melhor isso nunca será possível.