CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 VACINAR É VIVER
Publicado em: 01/11/2017
Para o pediatra Mário Cordeiro, não vacinar é um maltrato grave, um retrocesso civilizacional intolerável.
Por isso, não lhe peçam meias-palavras, nem contemplações, mas contem com ele para responder com ciência a todas as dúvidas dos pais.

"Ah, só foi um surtozinho?!? Pois, foi ‘só um surtozinho’ que matou uma adolescente e levou ao internamento de muitas mais, mas caso a vacinação abrande pode ter a certeza que será um surtozão com consequências gravíssimas.” O pediatra Mário Cordeiro (Lisboa, 1955) fala num tom de voz claramente irritado porque, confessa, “não tem um pingo de paciência, nem de tolerância” para com aqueles que desejam um retrocesso civilizacional, fechando os ouvidos à Ciência e deitando por terra aquilo que foi construído pelo esforço de tantos, ao longo de décadas. E como é que podia deixar de se indignar quando sabe que, em Portugal, aumentou o número de crianças não vacinadas: dos 85.500 bebés que nasceram, em 2015, 4.275 não foram vacinados. Ele que já viu muitas morrer e ficar com sequelas graves, na sequência de doenças que poderiam ter sido evitadas. Para Mário Cordeiro, é um problema de ignorância e de estupidez, contra as quais, infelizmente, diz, não há vacina. Filho de um pediatra que esteve fortemente envolvido na implementação de um Plano Nacional de Vacinação (PNV) que salvou milhares de vidas, tem consciência do salto espantoso que Portugal deu desde meados do século passado. Nos anos 60 (distantes, mas não tanto, porque é o ano em que eu nasci!), morriam por cá mais de 20 mil crianças e adolescentes. Número que hoje, graças às vacinas, é de cerca de 500. Quarenta vezes menos, mas a descida foi progressiva e, em 1980, tinha-se reduzido para um quarto, cerca de cinco mil óbitos. E continua: “As doenças evitáveis pela vacinação, pelo contrário, sendo cerca de 1.100, em 1960, desceram com a implementação do PNV e, em 1980, eram apenas algumas dezenas e a partir do final do século XX passaram a zero.”
Indigna-se, de novo: “Será que é preciso dizer mais alguma coisa?” De facto, não é! Recomenda que, se sentirem alguma hesitação em vacinar os seus filhos, perguntem aos seus pais, avós da criança que querem privar de protecção, que lhes conte a história do colega de aula vítima de poliomielite, do tio que morreu com sarampo (eu tive um!) ou do irmão que sucumbiu a uma meningite. “Não suporto a arrogância do mundo ocidental que, do alto da sua prosperidade, tem a ilusão de que consegue manter longe de si a doença. A memória colectiva apaga as histórias que ainda são tão recentes”, insiste.

“É pena não haver vacina para a ignorância (associada à vacina contra a estupidez!).” Mário Cordeiro

DE ONDE VÊM AS TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO
De onde vêm estas teorias da conspiração que insistem em ligar as vacinas aos interesses de multinacionais farmacêuticas ou a efeitos secundários sem qualquer base científica, propagadas através das redes sociais sem contraditório? O fenómeno é conhecido e os investigadores que o estudam garantem que quanto mais complexo é o mundo, mais propício é o terreno a explicações simples, a equações de primeiro grau de que saltam as incógnitas que nos fazem sentir perdidos. Mário Cordeiro concorda: “A ciência demora tempo e estas teorias oferecem certezas. Quando um cientista hesita, quando diz que ainda não se sabe, essa informação assusta-nos e preferimos pensar que ‘afinal, ele não sabe nada’. Simplesmente, a ciência, para ser segura, precisa de ser lenta e metódica, para chegar a certezas.” Como as que, 250 anos depois das primeiras vacinas administradas no mundo ocidental, temos em relação à vacinação. E se é desejável que os pais procurem respostas para as suas dúvidas, já não é legítimo que esqueçam os seus deveres para com os filhos, provocando-lhes um verdadeiro maltrato. “Vacinar é, no meu entender, uma questão de Direitos Humanos (e, portanto, uma questão de Direitos da Criança), para lá da defesa da saúde pública e da promoção da saúde individual e da comunidade”, não tem dúvida em afirmar.
Que os pais queiram tomar decisões informadas é uma questão completamente diferente, mas que o façam, argumenta Mário Cordeiro, com base em informação científica e rigorosa que não tenha origem no “diz-que-disse“, ou no último post numa qualquer rede social, mesmo que o seu autor alegue que resulta de uma experiência pessoal. “É muito fácil tornar mentiras em fenómenos ‘virais’”, lembra. Para tornar este exercício de informação mais fácil, acaba de ser publicado o livro da sua autoria, A Verdade e a Mentira sobre as Vacinas (Desassossego, 2017), em que explica, de forma clara e acessível, mas sem condescendências, tudo o que os pais precisam de saber para tomar a melhor decisão para os seus filhos. Porque, recorda, temos de ser também capazes de “pensar em como lidaremos connosco próprios e com os nossos filhos se suceder uma fatalidade que, afinal, poderíamos ter prevenido”.

O QUE É UMA REACÇÃO GRAVE À VACINA?
“Uma reacção grave, em termos de impedir a vacinação, é uma urticária grande ou um choque anafiláctico. As crianças que têm reacções alérgicas deste tipo não devem receber uma nova dose da vacina que as provocou, a não ser em meio hospitalar e depois de analisado o caso por um médico especializado. Mas estamos a falar de casos raríssimos e não façamos disso lei!”, esclarece Mário Cordeiro.

COMO É QUE UMA CRIANÇA FICA IMUNIZADA?
“As vacinas utilizam os mesmos agentes causadores das doenças, mas inactivados, atenuados, modificados ou utilizados apenas em parte. Quando a criança é vacinada, o seu organismo produz anticorpos para aquele agente específico. Assim, ao entrar em contacto com o vírus ou a bactéria causadores da doença, o seu filho está pronto para os atacar”, assegura o pediatra.

MITOS A ABATER
Mário Cordeiro desconstrói, com convicção, os mais perigosos mitos que são utilizados pelos militantes antivacinas para justificar a sua recusa da vacinação. Não tem ilusão de que dificilmente sensibilizará aqueles que se recusam a escutar os argumentos contrários ou a debater as questões, preferindo enredar-se em teias de paranóia que encontram sempre interesses escondidos em quem não pensa como eles. Não é a esses que se dirige, mas à imensa maioria que quer fazer o melhor pelos seus filhos. Aqui ficam alguns.

As melhorias das condições de higiene e sanitárias fizeram desaparecer as doenças e, portanto, não há necessidade de vacinar, mas sim de investir em infraestruturas...
Falso. Enganosamente falso, escreve Mário Cordeiro. As doenças evitáveis pela vacinação foram controladas ou desapareceram porque se vacinou em massa. E se é evidente que condições de higiene são fundamentais para tudo, recorda que nos países com condições sanitárias terríveis foi possível erradicar, por exemplo, a varíola ou controlar a poliomielite, mesmo sem água corrente e com esgotos a céu aberto – isto graças apenas às vacinas.

As vacinas têm imensos efeitos secundários e, até, alguns a longo prazo que não se conhecem. Há pessoas que dizem que podem causar cancro e matar.
Mário Cordeiro responde: falso, rotundamente falso. As vacinas são extraordinariamente seguras, confirma, mais seguras ainda do que os medicamentos, em geral. Todos os estudos e dados estatísticos o comprovam. Podem, obviamente, causar reacções, mas são leves e temporárias, como dor no local da injecção ou febre ligeira. Mas, conforme escreve, as vacinas são inofensivas. O risco de uma criança ter uma reacção adversa a uma vacina é muito, mas mesmo muito inferior ao risco de uma complicação grave das doenças que essa vacina previne. As vacinas, tal como qualquer medicamento, são alvo de um sistema de vigilância apertado, garantindo que qualquer reacção anormal seja exaustivamente investigada, o que com tantos anos de experiênciae muitos milhões – sim, centenas de milhões! – de vacinas administradas, em todo o mundo, permite afirmar que as vacinas têm um grau elevado de segurança, eficácia e qualidade. O sistema está tão bem gizado, garante Mário Cordeiro, que a notificação oficial de reacções adversas pelos profissionais de saúde é obrigatória.

As vacinas podem causar a síndrome da morte súbita do lactente...
Mário Cordeiro esclarece que essa síndrome nada tem a ver com as vacinas, embora, quando se começou a estudar a síndrome, a hipótese de associação tivesse academicamente de ser colocada, como o foi em relação a tudo o que se passava na vida dos bebés dessa idade. Constatou-se que não era o caso e que não havia qualquer relação entre uma e outra. E explica: aliás, desde que há mais de 25 anos se decidiu que as crianças deviam dormir de barriga para cima, a síndrome diminuiu para um quarto... e a percentagem de vacinação, entretanto, aumentou. Então, se fosse verdade, agora deveriam morrer muito mais bebés com morte súbita, o que não acontece.

A administração simultânea de várias vacinas pode aumentar o risco de efeitos secundários e sobrecarregar o sistema imunitário, abrindo portas a outras doenças.
Falso! Cientificamente falso, declara Mário Cordeiro. Todos os estudos científicos mostram que a administração simultânea de vacinas não causa qualquer problema, dado que a imunidade dos bebés e crianças é estimulada por inúmeros vírus e bactérias com os quais eles contactam, designadamentequando os pais lhes dão beijinhos. O simples acto de ingerir um alimento provoca respostas imunitárias muito maiores do que uma vacina – aliás, a maioria das bactérias vive na boca e não na seringa da vacina, onde não há bactérias! Um dos objectivos do PNV é a protecção precoce. Esperar por tempos mais tardios seria a inutilidade total... e a morte de muitas crianças.

Se ter as doenças faz com que a pessoa fique defendida para a vida toda, então é melhor ter a doença do que vacinar com vírus atenuados e coisas do género, não?
Mais um mito falso, confirma. A “pequena” grande diferença é que, diz, enquanto a doença causa imunidade, de facto, a mesma pode levar a consequências desastrosas e à morte. Para lá dos dias em que se está doente, a vacina desenvolve a mesma imunidade, mas sem essa parte indesejável. Assim sendo, não se percebe este mito. A vacinaçãoé segura porque é controlada, estudada, “feita à medida” do que o sistema imunitário pode e não, como a doença, com um carácter aleatório e, por vezes, brutal.

As vacinas causam autismo. Toda a gente sabe e até tenho um sobrinho que...
Mário Cordeiro explica que a origem deste mito está numestudo, de 1988, que suscitou inquietação acerca de uma possível relação entre a vacina anti-sarampo, parotidite e rubéola (VASPR) e o autismo, o que era uma fraude. O autor foi obrigado a retractar-se e a deixar de exercer medicina. Mas não foi o único: Andrew Jeremy Wakefield (médico gastroenterologista, Eton, Reino Unido, 1957) forjou, em 1998, os resultados de um pretenso estudo em que relacionava também a VASPR com o autismo, o qual chegoua ser publicado na revista científica Lancet. Isso provocou celeuma, mesmo depois de se ter descoberto que era tudo falso e de a revista ter apresentado desculpas. Esse médicoacabou por ser erradicado da respectiva ordem. Mas o mal estava feito. Depois, foi a vez de Robert de Niro, pai de uma criança autista, dar voz a esta relação entre a doença e as vacinas, provavelmente para tentar ter uma explicação para o infortúnio do filho e, com isso, levou a que milhares de crianças não fossem vacinadas e muitas tivessem morrido.

Como toda a gente se vacina, escuso de vacinar o meu filho... Assim, não tenho nem a doença, nem os eventuais efeitos secundários da vacina...
Este é um mito que enfurece ainda mais o pediatra. “Falso! Arriscado, traiçoeiro e horrendamente egoísta!”, escreve. “Quem pensa assim, pensa errado, por várias razões, entre as quais ser de um enorme egoísmo querer que os outros nos protejam e que nós não façamos o mesmo, dado que não estaremos a contribuir para a imunidade de grupo.”
E adianta: “A recusa individual da vacinação compromete o interesse colectivo, já que uma criança não vacinada por opção dos pais se adoecer pode contagiar outras crianças não vacinadas por contra-indicação médica comprovada ou por ainda não terem idade para ter iniciado ou completado a vacinação.” Desfaz, ainda, a ideia de que essa criança está a salvo, já que é muito provável que ela, mais cedo ou mais tarde, viaje para países onde as doenças ainda são endémicas ou entre em contacto com alguém que seja proveniente de um desses países. E recorda que quem opta por não vacinar os filhos deve estar bem ciente que está a fazê-los correr riscos desnecessários quanto à saúde e quanto à vida.

Os ministérios da Saúde estão feitos com as multinacionais, com a alta finança e com os países ricos que exploram os mais pobres. Aliás, são as multinacionais que disseminam as doenças para depois venderem medicamentos e vacinas.
A afirmação é falsa, escreve Mário Cordeiro, e se não fosse tão grave, até dava para rir. E pergunta: “E nos séculos XIII, XIV, XV e XVI quando houve epidemias de peste negra, tuberculose, sífilis ou gripe ‘espanhola’, esta já em 1918, para só citar algumas, eram seguramente os índios americanos, organizados em multinacionais (apesar de não haver aviões, nem Internet), que as provocavam.” Não tem dúvida de que “se o ridículo matasse, haveria muita gente que já se tinha ido”, mas lamenta que, com base nestes mitos e fake news, muitas pessoas de carne e osso morrem porque acreditaram nos profetas que dizem as maiores mentiras impunemente. É óbvio, afirma, que uma multinacional que fabrica vacinas quer recuperar o investimento de milhões que fez, mas recorda que isso acontece tanto com vacinas como com sapatos ou lâmpadas. Não vacinar um filho com base em histórias como estas é que não lhe parece admissível.

MORTE E VIDA EM NÚMEROS
ENTRE 1956 E 1965 registaram-se, em Portugal, mais de 40 mil casos de tosse convulsa, poliomielite, tétano e difteria.
ENTRE 2006 E 2015 o número total desceu para 913, de que resultaram “apenas” 23 mortes, com zero casos de poliomielite e zero casos de difteria, o que se traduz em conquistas extraordinárias, mas não irreversíveis.