CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 CONFISSÕES DE UMA “BARBIE GIRL”
Publicado em: 01/11/2017
As gémeas teriam quatro anos quando as vi a brincar com Barbies herdadas de um amiga muito querida. Exclamei que a “Barbie era vaidosa”. Quando, com genuína curiosidade, me perguntaram porquê, dei pelo facto de não ter grande resposta. Tentei um “Porque anda sempre muito bem vestida”, comentário que foi recebido como um elogio. “Eu gosto dos vestidos dela”, disse a Minho, “E eu dos vestidos e dos sapatos”, acrescentou a Mana. “Isso é ser vaidoso?”, quiseram saber.
Envergonhei-me de mim mesma: porque raio é que andar bem vestido correspondia ao pecado da vaidade? O problema era decididamente meu, educada a equiparar o tempo passado em frente de um espelho a defeito moral. Uma ideia detestável que não queria passar às minhas netas. Então sentei-me no chão e, pela primeira vez na vida, brinquei com Barbies.
Tempos depois reparei que a Barbie era capa da revista Time, numa reportagem dedicada à nova boneca, que agora surgiria com um corpo mais realista, numa resposta inteligente da marca às criticas de que as medidas originais contribuíam para que as meninas ambicionassem um corpo anorético. Citavam até um estudo que recordava que com aquela ausência de massa gorda, a Barbie era necessariamente infértil. Barbie que, agora, abraçava todas as profissões e mais alguma, e variava na cor de pele e textura de cabelos.
Depois não pensei muito mais nela até que, em Agosto, abri um e.mail em que me distinguiam com um Barbie Award. Desatei a rir. De surpresa e indisfarçável contentamento. Fiquei grata pela avaliação que faziam da minha vida profissional, nomeadamente por esta crónica na Pais e Filhos, orgulhosa por pensarem que inspirava as meninas a acreditar que podem ser o que quiserem, o novo lema da Barbie. E a ideia de uma Barbie Isabel Stilwell com que as minhas netas pudessem brincar, deliciou-me. Pedi apenas que a vestissem com calças de peitilho, prova visível de que era ela que mudava e não eu!
A entrega da distinção a onze portuguesas foi emocionante, mas quando vi a “minha” Barbie, fui assaltada por pensamentos inesperados. É a do modelo recente com a cintura e ancas realistas que tanto reivindicámos para as modernas barbies, mas parecia-me “gorda”! E não teria preferido um vestido de baile como a da Barbie da Mariza, também premiada?
Pois é, a nossa cabeça não é nada tão arrumada como julgamos e, muitas vezes, só quando confrontados com a realidade tomamos consciência das nossas profundas incoerências, e até arrogâncias. É claro que quero ser uma Barbie de jardineiras, mas porque é que não consegui reconhecer que isso não me impedia de também desejar ser Barbie princesa ou top-model? E até que ponto o politicamente correto não boicota a função de uma boneca, que é permitir-nos experimentar o que não somos?
É claro que custa confessar estas coisas, e é por isso que me obrigo a fazê-lo. Porque talvez nos ajude a percebermos que não abrimos facilmente mão do corpo que interiorizamos e que não vale a pena pregar o que, de facto, não sentimos (e para isso precisamos de descobrir o que sentimos). Mais ainda, a entender que as mulheres já não têm de ser uma coisa por exclusão da outra. Porque só a partir dai seremos capazes de mudar tanto como a Barbie, de facto, já mudou.