CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 A MINHA NETA MAIS PEQUENINA
Publicado em: 15/12/2017
Aos dois anos e picos a Marta é uma daquelas crianças seguras de si, que avança para os desafios, olhando-os de frente, seja o de conhecer uma pessoa nova ou subir a um escorrega gigante. Fala pelos cotovelos, primeiro em versão “papagaio louro”, repetindo a última palavra de cada frase que ouvia, mas agora com uma assertividade que lhe ordenar “Desliga o telefone!”, quando tentamos aquele malabarismo de conversar com duas pessoas ao mesmo tempo.

Esta Marta é a mesma Marta desde que nasceu (os olhos já riam), mas esta Marta é também a consequência do amor incondicional dos pais, completamente apaixonados por ela. Tem a sorte, como qualquer criança feliz, de ser o melhor do mundo para aqueles que a rodeiam. E nesse núcleo duro estão as duas irmãs mais velhas, modelos que quer imitar vinte e quatro horas sobre vinte e quatro. A Marta não usa fralda porque as “cascidas” não usam, tenta escrever no quadro, porque as “cascidas” escrevem, e o desejo de as “apanhar” é tão forte que anula hesitações e medos. Não só as lições que recebe são ao nível dos seus olhos (e não lá em cima, no mundo onde nós estamos), como tem direito a explicações de “educadoras-de-infância” pacientes, mas capazes de estabelecer limites e exercer autoridade sem complexos, nem receio de causar traumas. Aliás, se todos os pais soubessem como a mão de obra dos irmãos lhes poupa trabalho, não hesitavam em ter dois ou três.
Mas então, em que é que ficam os avós com estes netos mais novos? Orgulhosos, na medida em que percebem que aquela família é cada vez mais autónoma. Mas também mais humildes, na constatação de que a nossa experiência e as nossas teorias não são, nem as únicas, nem necessariamente as melhores. As “regras” da vida da Marta foram muito diferentes das que usei com os meus filhos, e até, das que a Ana aplicou com as suas primeiras filhas. Observei-as, confesso, às vezes com curiosidade e outras com mal disfarçada desconfiança. A Marta aprendeu a comer com as mãos, e preferiu granolas (a que chamei nestas páginas “alpista”), mamou muito para lá dos seis meses (a data limite, nos meus preconceitos), dormiu no quarto dos pais até “tarde”, tinha horários de sesta radicais, e por ai adiante. Temi as consequências, imaginei hábitos que nunca se quebrariam, e dois anos depois percebo como tantas das nossas verdades não passam de manias. Hoje, a Marta dorme com as irmãs e a pior ameaça é a de ser levada para a cama da mãe, come tudo (e mais alguma coisa) com talheres e um despacho que espanta, e foi crescendo da mãe para o pai, e do pai para o mundo com uma força que nos deixa maravilhados. A Ana cortou o cordão umbilical comigo para ser melhor mãe do que aquilo que eu fui, e isso enche-me de orgulho.
Neste preciso momento dedilho o teclado só com uma mão, a Marta adormeceu ao meu lado agarrada à outra, depois de lhe ter contado a história da Goldilocks e dos três ursinhos. Gosto de a ter uns bocadinhos só para mim. Há dias dei-lhe um cavalinho de pau só para ela, porque com tanta herança de brinquedos das irmãs acabei por nunca lhe dar um brinquedo novinho em folha. E há semanas reguei-a com a mangueira, para que as irmãs não tivessem uma memória que não lhe diz nada. Ela pode precisar menos de avó, mas eu preciso muito dela e da certeza de que permanecerei eternamente no seu coração.