CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 TUDO E MAIS UM PAR DE BOTAS
Publicado em: 10/01/2018
Produzem-se no mundo 23 biliões de sapatos por ano, cada americano compra mais de sete pares e os europeus não lhe ficam muito atrás. Portugal agradece a todas estas Imeldas.

Os mais novos não sabem quem foi Imelda Marcos. E muito menos ouviram falar nos sapatos da mulher do ditador das Filipinas. Já passaram mais de vinte anos desde que o casal foi corrido do poder, é verdade, mas a conclusão a que cheguei é que hoje 1.060 pares de sapatos, 888 carteiras, 71 óculos escuros e 508 vestidos compridos não parecem coisa tão extraordinária que valha primeiras páginas.

A sério, não é discurso de criatura em processo acelerado de envelhecimento. É mesmo assim. Produzem-se 23 biliões de sapatos por ano, o que significa mais de três por pessoa. Mas os três, entenda-se, correspondem à média do planeta, onde ainda muitos andam descalços, porque nos EUA, por exemplo, são sete pares e meio anualmente, crianças incluídas. Fonte APLF, citada pela revista New Philosopher, que dedicou uma edição especial à "tralha" que acumulamos.

A frase "Não tenho nada que vestir" continua a assaltar-nos todas as manhãs quando abrimos o armário e não nos apetece usar nada do que lá está dentro, mas os números deixam bem claro que se trata mais de um problema de saúde mental do que de falta de trapinhos: em 2015, gastaram-se 2,29 triliões de dólares em roupa e calçado, sendo que 24% foram por conta da Europa Ocidental, 20% dos EUA, 18% pela China e 9% pela América Central e do Sul. O resultado deste excesso são aterros atulhados de roupas e sapatos, porque nem a nossa pseudogenerosidade para com os países mais pobres (um bom pretexto para voltarmos a encher as gavetas) consegue escoar o produto. Com uma agravante ecológica, já que os 300 milhões de sapatos que lá vão parar, levam aproximadamente 50 anos a decompor.

O que leva a nunca estarmos contentes com o que temos, como um passeio pelos centros comerciais em época de saldos comprova à exaustão? Provavelmente porque querer sempre mais faz parte da nossa natureza, responde Antonia Case num artigo publicado na mesma revista. Para justificar a tese cita uma investigação de Richard Easterlin que em 1978 pediu a um universo representativo dos consumidores norte-americanos para indicarem o que lhes era essencial para "uma boa vida", a partir de uma lista com 24 itens que incluía coisas como carro, televisão, férias no estrangeiro, piscina, uma segunda casa. Pedia-lhes, também, para indicarem os objetos de que já usufruíam.

Dezasseis anos mais tarde repetiu a experiência, concluindo que apesar de os inquiridos terem entretanto adquirido novos itens (3,1 em 1994, por oposição a 1,7 em 1978), agora ambicionavam um maior número de coisas do que na sessão anterior (5,6 contra 4,4). O que, basicamente, revelava que o "Consumer Gap", o intervalo entre o que as pessoas têm e aquilo que queriam ter, mantinha-se igual - estavam sempre a 2,5 itens da felicidade! E isto, independentemente do ponto da escala social em que se encontravam.

Por outras palavras, haverá sempre lugar para mais uns sapatinhos. Portugal agradece. Com 81 milhões de pares de sapatos vendidos em 150 países, o que corresponde a 98% da produção nacional em 2016, pela nossa parte venham de lá as Imeldas Marcos. Uma consulta à Wikipedia confirma, aliás, que até os filipinos já a perdoaram, elegendo-a aos 80 anos para os representar no Congresso. Ligeiramente deprimente, mas é o que é.