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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
“POR FAVOR, FAÇA COM QUE OS MEUS PAIS PAREM!”
Publicado em: 01/03/2018
A lei é clara: a partir dos 12 anos uma criança deve ser ouvida em tribunal quando os assuntos em causa lhe dizem respeito, nomeadamente acerca da sua vida após a separação dos pais. Mesmo quando estão de acordo entre si, mais ainda quando não estão. Com cerca de doze mil divórcios com filhos por ano, esta é uma nova realidade, por vezes muito controversa, que a Máxima foi descobrir.
Isabel Stilwell
Teresa e João queriam divorciar-se por mútuo acordo. Contrataram o mesmo advogado e decidiram que Mateus, de 12 anos e Ema, de 10, ficariam uma semana a viver com um, e na outra com outro, estabelecendo valores de pensões e quem pagava o quê. Sabiam que nestas condições bastava-lhes apresentar o processo numa conservatória do registo civil, mas que o acordo de regulação das responsabilidades parentais teria de ser homologado pelo Ministério Público que confirmaria se as suas escolhas respeitavam o superior interesse da criança. Espantaram-se, e para dizer a verdade assustaram-se, quando os filhos foram convocados para “conversar” com o Procurador. “Não percebi porque é que era preciso envolver os miúdos, pois a separação já era dolorosa o suficiente”, conta Teresa. E João argumenta: “Se ninguém se metia na nossa vida quando éramos casados porque interferiam, agora, quando demonstrámos que vamos continuar a ser pais tal qual sempre fomos? A que propósito é que, agora ,se vai dar voz a miúdos?”
Rui Alves Pereira, advogado de família e defensor reconhecido dos direitos das crianças, sorri. Já ouviu estes argumentos, vezes sem conta, mas mantém-se firme na convicção de que devemos avançar para uma cultura que encare as crianças como seres autónomos, bem capazes de ter opinião sobre os assuntos que lhes dizem respeito, com o direito (e não o dever) de se manifestarem, como aliás confirma a lei e as convenções que Portugal assinou. Parece-lhe que o nervosismo dos pais resulta da ideia de que o tribunal vai decidir conforme a criança sugere ou pede, o que não faz sentido, porque não são elas que decidem em circunstância alguma, nem se pretende minar a autoridade dos pais. “Ninguém defende a ditadura da criança”, garante.
Não era só essa a angústia de Teresa e João. Temiam quem os filhos iam “apanhar pela frente”, justificando-se: “Sei lá se não apanham um daqueles que loucos, cheio de preconceitos contra o divórcio ou que acha que o lugar das mães é em casa.” O facto de os pais recearem que os magistrados não estejam preparados para escutar crianças é outra questão, afirma Rui Alves Pereira, mas insiste que o receio se deve traduzir num investimento em formação e em condições para que as crianças tenham uma audição amiga das crianças e não como um pretexto para engolir a autonomia dos mais novos. Até porque estas medidas vieram para ficar. Hoje, uma decisão que diga respeito a uma criança com 12 anos, ou mais, em que ela não foi ouvida (ou o juiz justificou porque o não foi), não é aceite em muitos países da União Europeia. O que significa que se um pai ou uma mãe for trabalhar para fora e pretender lá homologar o acordo, este será recusado.
Margarida Pereira da Silva, procuradora do Ministério Público no Tribunal de Família de Cascais, tem uma longa experiência na audição de crianças. Se algum acordo lhe suscita dúvidas — porque os pais podem acordar em coisas que não fazem sentido, como, por exemplo, que uma criança frequente duas escolas (e acontece) — opta por chamar os pais e ouvir as crianças, se tiverem mais de quatro ou cinco anos. Assegura que é sempre uma experiência positiva, tanto para um procurador, como para as crianças e jovens, que se sentem acolhidos e compreendidos. Teresa reconhece que a experiência de Mateus e Ema foi positiva. “Foram bastante nervosos, mas voltaram das duas horas contentes, a sentirem-se muito importantes”, reconhece com um sorriso. Mas não resiste a acrescentar: “Acho que tivemos sorte!”
As psicólogas Rute Agulhas e Joana Alexandre, coordenadoras científicas de um livro para crianças que vão ser ouvidas e autoras de um guia de boas práticas na audição de crianças destinado a profissionais, asseguram que regra geral a experiência para as crianças é positiva, fazendo-a sentir-se parte do processo. E se as boas práticas não são cumpridas? Nesse caso, reconhecem, “a audição pode ser revitimizante para a criança, o que poderá ter consequências claramente nefastas”. E é por isso, insistem, que “juízes e procuradores devem adquirir conhecimentos e competências específicas sobre como ouvir adequadamente uma criança, neste contexto.” E muitos já o fazem.
Vítima do conflito dos pais
Quando os pais não estão de acordo quanto à vida futura das crianças, mas não há acusações que constituam crime, o divórcio decorre num Tribunal de Família, num processo tutelar cível. Nesse caso, o casal é convocado para uma primeira conferência de pais, onde o juiz procura que chegue a acordo, desfiando a longa lista de vantagens de uma separação em que os pais superam divergência em nome do bem-estar dos filhos. Caso se chegue a consenso e nada indique outros problemas, muitos magistrados optam por não convocar as crianças, mesmo quando têm a idade prevista pela lei.
Além do mais, precisam de todo o tempo e de recursos para acompanhar aquilo que estimam representar cerca de 30 por cento dos casos que evoluem para conflitos graves, com acusações mútuas, incumprimentos e queixas, por vezes durante toda a infância e adolescência dos filhos. Número que parece crescer à medida que os pais pertencem a meios sociais mais favorecidos e, supostamente, estão mais bem integrados social e profissionalmente, como se os filhos não passassem de mais um bem a disputar, numa guerra de que, muitas vezes, os advogados acabam por ser cúmplices e os tribunais parecem incapazes de impedir.
Catarina Condesso, juíza no Tribunal de Cascais, e com quem, em instantes, se cria uma enorme empatia, dá conta do passo seguinte: “Quando não há acordo na primeira conferência, eu ouço todas as crianças, mesmo as mais pequenas. Não faz sentido estar a decidir um processo que diz respeito a uma criança que não conheço. Não julgo processos sem rosto!” Confessa que tem a sorte de trabalhar em equipa com a procuradora Margarida Pereira da Silva e que a audição é sempre feita em conjunto, no seu gabinete (embora gostassem de ter uma sala no tribunal para o efeito). A Procuradora confirma, com convicção: “Nem concebo não ouvir. É a consagração do Superior Interesse da Criança. Não decide, mas é sujeito de direitos sobre matérias que dizem respeito à sua vida e permite que o tribunal fique mais próximo do problema.”
E conflitos são o que não falta nestes tribunais. Helena Leitão, juíza no Tribunal de Família de Lisboa, garante que basta-lhe assistir no gabinete ao grau de conflitualidade entre os pais, e até de violência, “para entender que é virtualmente impossível que aqueles filhos possam estar bem.” E, nesses casos, defende com a segurança de quem se dedica de corpo e alma ao que faz, que é urgente ver e ouvir mesmo as crianças mais pequeninas, até para avaliar se é necessário instaurar um Processo de Protecção e Promoção da Criança, ou seja, declarar a criança em perigo, porque ser vítima de um conflito agudo dos pais também é uma forma de maltrato. Quando isto acontece, todos os procedimentos mudam, exigindo uma intervenção da Segurança Social muito distinta, obrigando a acompanhamento permanente das equipas técnicas, nomeadamente de um psicólogo, e a prazos de urgência.
Três meses de inferno, e mais ainda...
O processo que envolve Beatriz está longe de ser comum porque em disputa estavam a ama que a criou e a mãe que a abandonou, mas, muitos anos mais tarde, decidiu reclamá-la. Beatriz, agora adulta, conta como ficou feliz por finalmente aos 12 anos ter sido ouvida em tribunal, e como, aos 16 anos — o processo continuava! —, se enraiveceu quando o juiz recusou ouvir o seu depoimento, considerando-o irrelevante. Mas aconteceu um senão na experiência mais antiga: “Convocaram-me com meses de antecedência e foram tempos de ansiedade e de angústia em que me ditavam o que devia dizer, e o que não devia. Foi um pesadelo”.
Poderão já ter passado alguns anos, mas a prática parece não ter mudado muito. Rui Alves Pereira partilha da indignação: “Na notificação, o tribunal diz que [a criança] vai ser ouvida, mas o que acontece a esta criança no decorrer desses meses? Desculpe a expressão, mas é massacrada pelo pai e pela mãe. Esta prática, quanto a mim, não faz sentido, até porque a criança quando chega ao tribunal já vai nervosa e instrumentalizada.” E não tem de ser assim, refere, contanto um caso que considerou exemplar: “ A juíza e o procurador, ao perceberem em audiência a violência que existia entre aqueles pais, decidiram que a criança devia estar presente naquele exacto momento. E o filho, de nove anos, foi directamente da escola para o tribunal, sem ansiedades prévias, muito mais livre para ser ouvido, e a audição correu muito bem”.
Mas em tribunais sobrecarregados de processos e com necessidade de agendamento prévio de trabalho, estas sugestões podem ser miragens. Helena Leitão reconhece que a antecedência da convocatória introduz algum stress na vida da criança e é por isso que insiste, veementemente, com os pais para que só a avisem da audição na véspera ou no próprio dia. Para procurar dissuadi-los de pressionarem os filhos, adverte, sempre, que no momento em que falar com a criança vai perceber se o pedido foi cumprido. Mais ainda, que terá em conta se a criança “chega [à audição] e sabe tudo, não só o que se está a passar entre os pais, mas com detalhes que não deviam, em circunstância alguma, conhecer, revelando que os pais partilham com elas o que não devem, em lugar de as proteger”. Porém, reconhece que o tribunal estará sempre muito limitado nesta questão, porque só podem chegar à criança através dos pais.
Catarina Condesso, por seu lado, recorda que quanto mais os pais dão indicação de que colocam a criança no meio do conflito, mais decisiva é a necessidade de ouvir a criança, transformando a audição numa oportunidade de a fazer entender que está a ser envolvida numa questão que não tem nada a ver com ela, procurando desmontar, ao máximo, o que foi construído em casa, sem que, muitas vezes, os pais tenham sequer consciência do que fizeram. “Dizer-lhes que os pais, às vezes, também não se portam bem tem um efeito imensamente libertador para muitas delas”, assegura.
Rute Agulhas e Joana Alexandre argumentam que tudo se pode tornar mais fácil para a criança se esta for acompanhada por um técnico que já conheçam, o que a lei permite. Aliás, são muito firmes quando defendem que “as audições devem contar sempre com a presença de um técnico especialmente habilitado para o efeito. Não tem necessariamente de ser psicólogo, mas deve ter competências específicas para entrevistar uma criança e também ter conhecimentos de desenvolvimento e psicopatologia infantil.”
“Os meus pais vão saber o que aqui digo?”
Se é relativamente fácil perceber o benefício de um adolescente manifestar as suas vontades junto de quem decide questões que lhe importam, até porque tende depois a aceitar muito melhor a decisão do tribunal, há questões na audição de crianças que não podem deixar de perturbar. Como vivem as crianças o inevitável conflito de lealdades? Como é possível que não se sintam cúmplice de uma decisão que pode desgostar o pai ou a mãe, e até traidoras, se imaginam que, de alguma forma, ajudaram a incriminar algum deles, ou ambos? Rui Alves Pereira assegura: “A audição não é como se viu numa telenovela que por aí apareceu, em que o juiz, numa sala de audiências e em frente dos pais, pergunta à criança se ela quer ficar com o pai ou a mãe.” Helena Leitão, Catarina Condesso e Margarida Pereira da Silva confirmam: ninguém questiona a criança sobre de quem é que gosta mais e com quem é que quer ficar. E fazem questão de lhe deixar muito claro, desde o primeiro instante, que a decisão do tribunal não resultará do que ela ali disser ou deixar de dizer.
Rute Agulhas e Joana Alexandre não estão seguras de que estas boas práticas estejam largamente implementadas, nem que todos os magistrados se encontrem tão bem preparados como os que entrevistámos. Embora a sua opinião se refira ao conjunto de situações de audição de crianças, nomeadamente em situações de crime, necessariamente mais delicadas, citam estudos que “apontam para o facto de mais de metade das questões colocadas à criança serem de natureza fechada ou mesmo sugestiva, enquanto a percentagem de questões que promovem o relato livre revela-se inferior a 10 por cento”. Preocupante é, também, o facto de a lei definir que a “conversa” pode contar com a presença dos advogados dos pais, o que equivale, na prática, a sentirem os pais presentes. Rui Alves Pereira garante que nunca faz uso dessa prerrogativa e Helena Leitão e Catarina Condesso garantem que nas suas audições de crianças não há advogados. Para Catarina Condesso, “é preciso fazer a leitura da lei de acordo com o superior interesse da criança. As crianças têm a noção que está ali o representante do pai e da mãe. Faço um despacho a dizer que será só na presença do MP e, se for necessário, de um técnico especializado, senão o resultado é nenhum”. E nem uma nem outra das magistradas viram a sua decisão recorrida, o que significa que pais e advogados entendem que assim é que deve ser.
Contudo, se a sua ausência física é um benefício incontestável, a verdade é que a lei portuguesa também prevê que a conversa seja obrigatoriamente gravada (som e vídeo, se possível) e a transcrição entregue aos advogados das partes. Ou seja, aos pais. Sendo assim, como pode alegar-se que é um espaço de liberdade, quando os filhos têm de regressar a casa com aqueles pais, de quem dependem em absoluto? E num conflito em que uma, ou ambas as partes, está disposta a tudo, como pode até assegurar a criança que o que ela ali diz não vai parar, até, às capas de revistas, como aconteceu no mediático caso de Bárbara Guimarães e de Manuel Maria Carrilho? (ver caixa).
Rute Agulhas e Joana Alexandre consideram que “tem de ser dito à criança, de forma muito clara, que aquilo que ela vai dizer será gravado e que os pais poderão ter acesso ao seu conteúdo. Só desta forma a criança pode decidir se quer, ou não, falar. E tem o direito de não falar. Informar de forma adequada à sua capacidade de compreensão para que o seu consentimento seja, de facto, informado.” Mas, reconhecem, “as crianças mais novas não têm, muitas vezes, noção destas implicações e acabam por sofrer represálias em casa.”
As juízas Catarina Condessa e Helena Leitão interpretam a lei de forma diferente, mais próxima daquilo que estipula a lei alemã, reservando o conteúdo das audições apenas para consulta do Ministério Público ou das instâncias superiores, em caso de recurso.
Para que isto seja possível, explica a juíza Catarina Condesso, é preciso fundamentar a decisão noutros meios de prova, não usando nada que resulte da conversa com a criança. E se não o conseguisse fazer com outros meios de prova? Responde, decidida: “Nunca aconteceu. Mas se acontecesse, eu teria de encontrar tudo o que pudesse para proteger aquela criança porque uma coisa é certa: aqui eles entregam-se e pedem que não saia daqui. E esse, para mim, é que é o superior interesse da criança a que eu tenho de me vincular.”
Nem sempre, infelizmente, as crianças têm a sorte de ser ouvidas por magistrados tão empáticos e sensatos, capazes de pôr a lei ao seu serviço. E, mais grave ainda, pode haver crianças de tal forma manipuladas pelos pais que assumem esse momento com o juiz exactamente como uma forma de directamente magoarem o progenitor contrário, ou de fazerem chegar ao juiz as ideias do pai ou da mãe de que estão mais dependentes psicologicamente. Mas se parece tão óbvio que é no interesse da criança por que é que a lei portuguesa não prevê o segredo destas audições? Rui Alves Pereira justifica: “É verdade que o segredo poderia ajudar a que a criança não se sentisse traída, mas também pode acontecer que um advogado, ou um psicólogo, queira ouvir a audição, para que se perceba se ela não foi instrumentalizada ou se as afirmações não foram tiradas do contexto ou usadas de forma a confirmar, por exemplo, os preconceitos de quem decide”.
“A decisão não é tua!”
A procuradora Margarida Pereira da Silva diz que a primeira coisa que faz é explicar à criança que vai ao “Tribunal dos Pequeninos” por que razão é que ela não teve tempo de ir à escola. Conta-lhe que quer sempre conhecer todos os meninos envolvidos nos processos, e que ele/ela não é excepção, sublinhando, evidentemente, que a decisão não será deles. Depois disto ficam logo à vontade e, por regra, são eles que começam logo a fazer perguntas. Ao longo de uma hora, por vezes mais, torna-se cada vez mais claro para quem escuta quais são as questões importantes para ela, o que está a correr bem, mal ou muito mal na sua vida. O que, assegura, deixa o procurador e o juiz em “melhores condições para encontrar uma solução mais próxima dos seus interesses.”
Helena Leitão conta que optou por usar a beca nas audições de crianças, apesar da sugestão de que os profissionais não o façam, exactamente porque concluiu que reforça a ideia de que é ela que decide. Explica: “A maior parte [das crianças] chega a dizer ‘Já sei que é a minha opinião é que vai contar.’ E eu contraponho logo: ‘Não, a tua opinião é importante, por isso é que aqui estás, mas quem decide sou eu’. Explico-lhe que vamos conversar, como numa conversa com a professora — não vou dizer que é uma conversa de amigos ou de colegas porque não é. E, a partir daí, conversamos. Inicio as perguntas sobre a vida quotidiana, até a sentir tranquila. São dez ou 20 minutos, depende das crianças. Depois conversamos sobre a separação, há quanto tempo os pais estão separados, se ficou muito triste, como ficou a sua vida depois, se ficou a viver com quem, a que horas se deitam... Por essa altura, já elas estão a falar muito livremente“.
Catarina Condesso e Margarida Pereira da Silva ouvem as crianças em conjunto e já têm uma experiência longa. Catarina Condesso diz: “Pergunto sempre que comportamento é que gostariam que a mãe e o pai mudassem, o que gostariam que os pais soubessem e que não têm sido capazes de lhes dizer.” Margarida entusiasma-se: “Deixam-nos muitos recados”. E desabafa: “Não é vir aqui que é traumático. Os traumas trazem-nos de casa!”. São assuntos dolorosos e sensíveis, reconhecem, e nenhuma criança fica insensível ao conflito entre os pais. Mas e se são eles a dizer que estão zangados com a mãe ou com o pai? Helena Leitão aceita responder: “Quando me dizem, por exemplo, ‘Eu não gosto do meu pai’, eu respondo ‘Está bem, mas vais-me ter de explicar porquê. Tenho de perceber as tuas razões, porque, olha, ele gosta de ti porque não nos larga, não desiste deste processo, ele está sempre a querer estar contigo e tu tens de me dizer por que razão não gostas dele. Posso aceitar, mas tens de me explicar’. E aí, sim, começamos a perceber melhor se o sentimento é genuíno e temo-lo em conta, ou se é resultado de uma manipulação, de alguma coisa estranha, até pode ser um bloqueio emocional. Mas essa informação para nós é importante, até para poder pedir para a criança apoio psicológico e outras medidas de acompanhamento à família.“
“Por favor, faça com que os meus pais parem!”
Infelizmente, o grau de sofrimento de muitas destas crianças é inimaginável. Enquanto pais e académicos discutem se é ou não bom para a criança ser ouvida, o que os magistrados escutam, em muitas destas audições, é o desespero dos filhos. Que, muitas vezes, imploram ao juiz: “Senhor Doutor, faça com que os meus pais parem!”. O desabafo e a esperança leva-os a sair da audição mais reconfortados e deixa os magistrados mais convictos de que têm de agir de forma mais determinada. Contudo, a criança não pode depositar esperanças num juiz ou procurador para descobrir que este não só não consegue “fazer com que tudo pare”, como que acaba por também o “abandonar” por um motivo tão prosaico como uma transferência de comarca.
Judite, a educadora de infância de Tomás, recorda a alegria com que o seu aluno de quatro anos regressou de uma audição no tribunal do Porto, dizendo-lhe: “O senhor da Casa das Zangas prometeu-me que vai fazer os meus pais parar de discutir”. Como não esquece a desilusão sentida por Tomás quando, dois anos mais tarde, estava tudo na mesma, e o juiz que lhe dera colo afinal desaparecera como uma fada madrinha que se evapora no ar. Rute Agulhas e Joana Alexandre confirmam “a importância de começar o processo de audição por avaliar e clarificar muito bem as expectativas da criança, exactamente para que ela não se sinta enganada. Todo o sistema profissional tem o dever de ser totalmente honesto com a criança e de não fazer falsas promessas.”
Catarina Condesso, por seu lado, garante que não gosta de pôr o tribunal acima dos pais e repete, insistentemente, às crianças que “os pais é que decidem!”. Insiste: “Nunca prometo a uma criança que o conflito vai parar. Não dou essa promessa a miúdos porque que eu não sei! Infelizmente, há muitos casos em que não o conseguimos fazer — prometo só que vamos tentar. Os pais têm de se manter como a referência e só estamos cá quando os pais não conseguem o acordo.” Embora, obviamente, o tribunal possa chegar a um ponto (que alguns acham sempre tarde demais) em que confronta os pais com a incapacidade de, pelo menos naquele momento, não cumprirem com os seus deveres, sugerindo que a criança seja entregue a uma avó ou, em última hipótese, a uma situação de acolhimento temporário. Margarida Pereira da Silva não esconde até onde chega o desespero de algumas crianças. Como no dia em que uma menina, durante uma audição, lhe perguntou: “Margarida, acreditas em milagres?”. Respondeu que sim, mas a criança, desanimada, protestou: “Mas há muito poucos. Esta guerra já dura desde que nasci.”
Ajudar os pais a vencer
Confrontados com o sofrimento dos filhos, veiculado pela boca de um juiz ou de um procurador em termos muito assertivos, as reacções dos pais variam. Para alguns funciona como um balde de água fria, levando-os a cair na realidade, mas, para outros, conta Rui Alves Pereira, é só mais uma acha para a fogueira, um pretexto para apontarem o dedo ao outro. Catarina Condesso, confirma. “Muitas vezes, quando lhes damos conta da dor que vimos nos seus filhos, tomam de repente consciência do que está a acontecer.” Por vezes, adianta, a culpa não é toda dos pais que nunca foram escutados com tempo e com disponibilidade e que nunca se sentiram acolhidos. Como aconteceu num caso em que perceberam que o longo processo de incumprimentos durava há onze anos! Conversou com os pais, disse-lhes que aquilo não podia continuar, que os filhos estavam a sofrer, mas que certamente já tinham ouvido tudo isto muitas vezes. Mas o pai confessou: “Foi a primeira vez… Hoje foi um grande estalo emocional...” Segundo contava, em todas as conferências só lhes era perguntado se tinham chegado a acordou ou não, se havia uma decisão ou não, e que aquela era a primeira vez que tinham conversado com eles. Comove-se. “E os senhores pediram desculpa um ao outro, aqui, à nossa frente! Isto é muito gratificante.”
Helena Leitão tem experiências semelhantes, mas perante a questão não consegue evitar um franzir de sobrancelhas. Fica-se com a ideia de que quer ser optimista, mas que a realidade destes casos mais difíceis a impede de o ser. “Num primeiro momento, as coisas parecem melhorar, mas rapidamente regressam ao mesmo ponto, de tal forma que, muitas vezes, apetece gravar a conversa que tiveram no meu gabinete e obrigá-los a ouvi-la todos os dias!” Mas não ouvem e avançam para um julgamento que, lembra, só vai trazer para dentro de uma sala de tribunal o que já andam a discutir, com a agravante de obrigar a família e os amigos a testemunhar, a dizer mal uns dos outros, agravando o conflito. Há, no entanto, uma última arma para acordar consciências. A informação de que, depois dos 18 anos, os filhos podem ter acesso ao processo e, nessa altura, conhecerão em detalhe as acusações mútuas, os argumentos utilizados, as falsidades e os esquemas, mas também a violência e os abusos cometidos. E são cada vez mais os jovens a pedir para ver a documentação, por vezes depois de uma infância e de uma adolescência de inferno em que, atingida a maioridade, fecham a porta a um ou até a ambos os pais. Mas, para alguns, é o começo de uma nova vida. Ao descobrirem que, afinal, a história não foi nada como lha contaram procuram, finalmente, o progenitor que o outro denegriu ou afastou. Porque, ao contrário do que a menina dizia à procuradora Margarida, ainda vão acontecendo milagres.
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Dinis Carilho: um processo que acabou arquivado
As declarações de Dinis Carrilho em tribunal fizeram manchetes de revistas, semanas depois de ter sido ouvido. A indignação levou-me a escrever uma crónica para o Jornal de Negócios, a que dei o nome de “Quando a Justiça trai as crianças”. A Procuradoria-Geral da República veio esclarecer que o depoimento da criança não estava em segredo, ao contrário do que eu afirmara, ou seja, fora entregue aos advogados de ambas as partes. Considerava, contudo, que existia “relevância criminal” na publicação do depoimento, ou alegado depoimento, do filho de Bárbara Guimarães e de Manuel Maria Carrilho, encarregando o DIAP de investigar o caso. Estávamos, então, em Fevereiro de 2016. Dois anos depois, não tendo voltado a ouvir falar no assunto, solicitei informações à PGR que confirmou que, em 5 de Janeiro de 2017 (praticamente um ano depois), o MP deduzira acusação, mas que dois meses depois o processo fora arquivado. Ou seja, não houve consequências para ninguém. Excepto para a criança. E para a confiança dos portugueses na Justiça. IS
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Como ajudar um filho
Ajudar um filho a tirar partido dos desafios que a vida lhe põe no caminho é missão dos pais. Mesmo que estejam em conflito aberto, cabe-lhes fazer com que a criança se sinta livre de poder expressar a sua opinião, sem sentimentos de deslealdade. Rute Agulhas e Joana Alexandra deixam cinco conselhos:
1. Há que explicar às crianças que a sua audição é um direito e não um dever.
Ninguém se zanga se elas disserem que não sabem ou que não querem responder às perguntas que lhes colocam.
1. Diga-se-lhes que têm o direito de dizer o que pensam e sentem, sem medo.
3. Confirme-se-lhes que podem estar tranquilas, pois é uma conversa, e que devem dizer a verdade.
4. Devem-se identificar as diferentes pessoas que estarão presentes no tribunal e salientar que todas elas estão centradas no bem-estar das crianças em causa e em perceber o que é melhor para elas.
5. Diga-se às crianças, com clareza, que não vão a tribunal para decidir.
Para aceder gratuitamente ao livro “O dia que Mariana não queria”, de Eunice Guerreiro: https://crlisboa.org/2016/docs/Livro_AudicaodaCrianca.pdf
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O que pode fazer o advogado da criança
A lei prevê a possibilidade de uma criança pedir ao juiz a nomeação de um advogado, mesmo num processo de regulação das responsabilidades parentais. Ou seja, um advogado que defenda os seus interesses, mesmo que contra a mãe e o pai. Mais achas para a fogueira do conflito familiar, para além de um atestado de incompetência ao Ministério Público, que tem por missão defender a criança? Talvez não. Sobretudo se, como defende Rui Alves Pereira, os advogados da criança forem advogados especializados nesta área, formando uma “bolsa” a que o tribunal pode recorrer. A juíza Catarina Condesso concorda e lembra, aliás, que “em situações de perigo já é obrigatório nomear um patrono oficioso que se dedica inteiramente àquele miúdo e que, quando tem vocação, se torna o seu amigo especial, velando pelos seus interesses”. Margarida Pereira da Silva, procuradora do MP, apresenta mais um argumento de peso: “Há uma função que eu não posso fazer e um advogado da criança pode: demandar o Estado português. Eu sou o Estado e eles não são. E isso pode ser importante em determinadas situações, em que a responsabilidade pela situação em que a criança se encontra pode ser de entidades estatais. Falta alguém que pergunte porque é que o projeto de vida de uma criança não foi feito, apurar responsabilidades das Comissões de Proteção ou da Segurança Social, apurar o que justifica uma demora de quatro anos a ser sinalizada e, se estava sinalizada, porque é que só aparece em tribunal.” Porque, de facto, ninguém responsabiliza o Estado por roubar o futuro a uma criança. Venha daí o advogado da criança!
CAIXA
11.621 é o número de divórcios com filhos, de um total de 22.340 divórcios, em 2016.
Fonte: INE (dados provisórios)
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