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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
OS TELHADOS DE VIDRO DA DISCREPÂNCIA SALARIAL ENTRE HOMENS E MULHERES
Publicado em: 26/05/2021
Se esta discrepância salarial significasse que em Portugal as mães estavam realmente mais tempo com os filhos do que as suas congéneres da OCDE, não se perdia tudo, mas infelizmente as nossas crianças passam mais dez horas por semana na creche e no jardim de infância do que a média europeia.
Não há semana em que não faça notícia a diferença de remuneração entre homens e mulheres, com destaque para números chocantes, que nos colocam entre os piores da Europa. A legenda do indicador escolhido, reza sempre qualquer coisa do tipo “Mulheres penalizadas”, e invariavelmente o enunciado da questão é colocado em termos emotivos. Por exemplo, esta semana, um artigo no Expresso começava assim: “Cara leitora, ganha muito menos do que os seus colegas homens, na mesma faixa etária, nível de qualificações e antiguidade na empresa? Se a resposta é sim, não está sozinha.”
Simplesmente a “Cara leitora” — se não ler o resto do artigo, é preciso dizê-lo — ficará convencida de que esta injustiça acontece entre “colegas”, homens e mulheres que trabalham na mesma empresa, onde desempenham as mesmas funções, e que a discriminação se deve ao facto de pertencerem ao sexo feminino. O que não é o caso.
O que o estudo ali citado — “Sticking floors or glass ceilings”, de duas economistas da OCDE — vem clarificar é que, em Portugal, 98,9% destas diferenças salariais dizem respeito a mulheres que têm filhos, sobretudo filhos pequenos. Quando se tornam mães escolhem, ou mais provavelmente são compelidas a escolher, empregos em empresas menos competitivas, em setores profissionais com salários mais baixos, mas que em contrapartida tornam possível a conciliação com a vida familiar. Deixam igualmente de ter a flexibilidade que lhes permita fazer horas extraordinárias, que representam uma parte significativa da remuneração final que os homens levam (a mais) para casa (e, presume-se, também as mulheres sem filhos).
Ou seja, não são “penalizadas” pela entidade patronal ou pelo machismo empresarial, nem tão-pouco pelos homens que com elas trabalham, como tantas vezes se infere. Mais ainda, objetivamente não se trata de um problema laboral, mas social. E dizê-lo não é negar a existência de um problema – os baixos salários que as mães auferem e as horas de trabalho não remuneradas com a casa e os filhos são uma evidência –, muito pelo contrário, já que é mais difícil mudar valores que norteiam comportamentos, do que promover leis de trabalho, que uma entidade qualquer se encarregará de fiscalizar. E de caminho corremos sempre o risco de impingir aos outros modelos de vida que podem bem não lhes interessar.
Convenhamos, quem é que tem autoridade moral para dizer se, quando opto por um emprego mais flexível, o faço porque quero realmente passar mais tempo com os meus filhos – é assim tão estranho? Ou se decidi deixar a minha carreira porque me apeteceu, ou porque o meu marido pôs a dele à frente da minha? E quem sabe se o que me moveu foi a incapacidade de suportar a autocensura sempre que sou obrigada a noitadas e não vejo os meus filhos dias seguidos, mesmo que estejam com o pai? Ou as minhas saudades deles. E pode bem ser que quem me leva a desinvestir não seja um homem, mas a minha mãe, que garante que os netos vão acabar na droga se não lhes der mais atenção.
Há que equacionar também outros dados da questão. Que a divisão das tarefas em casa é tudo menos equitativa, é certo, mas é uma causa ou uma consequência da opção profissional da mulher? E, por exemplo, se o casal encarar o(s) salário(s) como um bolo comum, e ela conscientemente desejar que o seu trabalho em casa e com os filhos conte como a sua contribuição? Não me serviria a mim, mas posso por isso classificar a opção de “penalizadora” para quem livremente a toma?
As provocações podiam continuar indefinidamente, mas fica aqui apenas mais uma: se esta discrepância salarial significasse que em Portugal as mães estavam realmente mais tempo com os filhos do que as suas congéneres da OCDE, não se perdia tudo, mas infelizmente as nossas crianças passam mais dez horas por semana na creche e no jardim de infância do que a média europeia.
Decididamente, o assunto merece muito mais do que ser entrincheirado numa guerra de sexos.
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