CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 HOMENS, VENHAM TRABALHAR PARA A ESCOLA!
Publicado em: 23/09/2021
É mais difícil encontrar um educador de infância do sexo masculino do que um tigre na Serra da Malcata, e mesmo na primária são uma espécie rara. E tenho a certeza absoluta de que isto não é uma coisa boa.


Querida Ana,

Quero fazer uma birra por mais homens na escola e no jardim-de-infância!

A sério, embora já tivesse a percepção de que a escola é um lugar de mulheres, fiquei chocada com os números que encontrei no recém-publicado Educação em Números, referente aos anos de 2005 a 2020. Toma nota daquilo a que chamam “taxa de feminidade”: é de 99% no pré-escolar, de 87% no 1.º ciclo, e 72% no 2.º e 3.º ciclos.

Ana, o que isto quer dizer é que é mais difícil encontrar um educador de infância do sexo masculino do que um tigre na Serra da Malcata, e mesmo na primária são uma espécie rara. E tenho a certeza absoluta de que isto não é uma coisa boa, mas não vejo ninguém preocupado com as quotas neste sector.

É claro que haverá logo quem venha contestar a minha birra dizendo-me que se não há mais é porque eles não querem ser educadores ou professores — o exacto mesmo argumento que é utilizado para justificar a ausência de mulheres na política ou nas administrações das empresas. Não serve.

Ainda para mais porque tradicionalmente os professores primários eram homens, e se desapareceram da escola alguma razão haverá — talvez não queiram mergulhar num mundo só de mulheres, provavelmente a profissão ficou de tal forma associada a um território feminino que a pressão é grande para que um rapaz não venha a ser professor.

Mas o que sei, e me preocupa muito, é que quando fiz a pergunta a uma responsável por uma instituição de formação de educadores de infância, a resposta foi de que os jardins-de-infância e as escolas primárias tendem a preferir contratar uma mulher porque os pais associam professores-homens à pedofilia e ao abuso. Não querem que sejam eles a levar as meninas à casa de banho, e que cuidem delas de forma mais próxima. Não queria acreditar, mas juro que foi o que me disse.

A minha birra ganhou a partir daí ainda mais força. Quero mais professores na escola!

Por isso, Ana, ajuda-me a reforçar a minha causa, respondendo-me a duas perguntas:

1. É verdadeira a minha intuição de que sobretudo os rapazes ganham muito em terem como educador ou professor um homem? Que eles ficam muito menos histéricos com as “lutas” e a irrequietude dos rapazes do que as educadoras/professoras? Que os deixam aventurar-se mais, e tendem a valorizar mais o conteúdo do que a forma (limpinha, arrumadinha, sublinhadinha a muitas cores, como muitas meninas gostam?).

E 2. será que os pais estão loucos, e imaginam que todos os homens que gostam de crianças, que têm vocação para trabalhar com elas, são potenciais abusadores?
Preciso das tuas respostas com urgência.

***

Querida Mãe,

Desconhecia os valores exactos dessa tal “taxa de feminidade”, mas não me surpreende. Durante todo o meu curso em Educação de Infância tive dois colegas. E mesmo enquanto mãe, tirando os professores de Educação Física, ninguém tem dúvidas de que é um mundo dominado por mulheres. Mas fiquei também muito chocada com o que me conta sobre a desconfiança em relação a abusos: aparentemente (e infelizmente) parece não ser uma percepção rara, nem sequer exclusivamente nacional, resultando de uma mistura de preconceito de uma sociedade machista que se pergunta “Por que raio é que um homem quereria trabalhar com crianças?”, com a crescente mediatização de abusos sexuais e uma narrativa distorcida acerca de homens “perigosos”. O mais curioso é que pode ser exactamente um sintoma da falta de homens na escola.

Já aqui voltamos, mas vamos primeiro à sua intuição: quando os resultados académicos das raparigas começaram a revelar-se mais elevados do que os dos rapazes, os investigadores tentaram perceber porquê. Surgiram estudos/artigos/debates a questionar se a “feminização da escola” não estaria a prejudicar os rapazes alegando que, como a mãe argumenta, os homens estavam mais sincronizados com a forma com que os rapazes aprendem e se desenvolvem ou, ainda, como maneira de compensar a ausência de uma figura parental masculina. Estes argumentos foram refutados pela evidência. Os estudos mostram que o género do professor não afecta os resultados. O que não é o mesmo que dizer que rapazes e raparigas aprendem da exacta mesma forma, ou passam simultaneamente pelas mesmas fases de desenvolvimento — ou seja, um professor atento a essas diferenças, será um melhor professor, seja homem ou mulher.

Espere, espere, mãe, isto não quer dizer que não sejam precisos mais homens na escola, e que a sua birra não tem fundamento. Ter mais homens na escola permite às crianças mais modelos com que se podem identificar. E é mesmo importante que as crianças convivam, aprendam e brinquem com pessoas que são “diferentes delas”, ou seja ganham com isso os rapazes, mas também as raparigas. Mas, também, porque a presença de mais homens na escola, permitem-lhes assistir a relações saudáveis de trabalho, cooperação e amizade entre homens e os seus pares (homens ou mulheres) e, ainda, entre homens e crianças.

E assim voltamos ao medo dos pais de que um educador cuide dos seus filhos: falta-lhes o contacto com — como é que a mãe dizia?... Ah, já sei, “exemplares da espécie” naquele papel. Faltam-lhes bons exemplos, falta-lhes o feedback dos seus filhos. Afinal ouvem histórias terríveis nos meios de comunicação social, e depois não têm casos reais, positivos, próximos, que desmintam a generalização.

E por fim, se queremos realmente acabar com a ideia de que há profissões “só para raparigas ou só para rapazes” não basta lutar para que as mulheres possam ser astronautas, é preciso também batalhar para que os homens possam abrir o seu leque de opções de trabalho. Por isso junto-me a si na sua birra!

Beijinhos



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