CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DESEJO UMA VIDA INTENSA COM OS MEUS NETOS
Publicado em: 05/10/2021
Muitas vezes choramos nos enterros não pela pessoa que morreu, mas pela nossa própria dor, às vezes dores antigas, pelo nosso medo da morte e pela angústia de saber que não vamos andar aqui para sempre.


Ana,

Pouco depois das gémeas nascerem mandei-te uma mensagem a perguntar se achavas que elas iam chorar muito no meu funeral, lembras-te? Pronto, admito que foi um bocadinho tétrico, mas retrospectivamente percebo que aquilo que queria era que me dissesses que ia ser relevante na vida delas. Prometeste-me que sim, e 11 anos depois sinto-me segura de que choravam mesmo. E isso conforta-me porque é sinal da relação que construímos, entretanto. Mas hoje espero sinceramente que só chorem um bocadinho.

Não te impacientes, já vou chegar ao meu ponto. Pronto, já lá estou: e o meu ponto é que fico enervada quando vejo posts nas redes sociais de pessoas destroçadas pela morte dos avós, avós que já morreram velhinhos, depois de uma vida cheia. Não disputo obviamente o que sentem, longe disso, mas o que me entristece é que sinto que para serem tomadas de uma dor tão violenta e dilacerante é porque os avós desempenharam, na realidade, o papel de pais (e há tantos que o fazem). Ou seja, na realidade, choram a morte dos pais que é, apesar de tudo, coisa diferente.

Estou a conseguir explicar-me? Bem, não importa, o que quero é ter uma vida intensa com os meus netos, vê-los crescer, tornarem-se adultos, descobrirem a profissão que os apaixona, encontrarem o verdadeiro amor e terem filhos. Quero que, nas suas vidas cheias e preenchidas, a morte de alguém velhinho e que teve uma vida plena seja aceite como natural. Uma perda, sempre, que provoca desgosto e saudade, claro, mas não desorientação, nem uma terrível sensação de abandono e de solidão. Por isso, sim, confirmo que troco o pranto — o inconsolável, note-se — pelo desejo de que me recordem constantemente, com aquele sorriso simultaneamente meigo, divertido e até trocista que lhes admiro tanto.

Tenho dito.

***

Querida Mãe,

Já sei... E se não morresse nunca e não tivéssemos de decidir a forma de luto que íamos fazer por si? É que é como a mãe diz, perder os pais é diferente e, quero recordar-lhe o que parece ter esquecido, ou seja, que os avós dos meus filhos são na verdade meus pais (e aqui veja um emoji de um sorriso).

Mas espere, já agora esclareça-nos: quer que elas fiquem moderadamente inconsoláveis na vida real, mas e nas redes sociais? É que ainda assim é algo diferente. Normalmente é só um post, por isso se calhar vai ser preciso carregar um bocadinho na tristeza, para não ficar a parecer pouco, não?

Mais a sério. Percebo o seu ponto, mas de repente ao lê-la lembrei-me da Teoria de Desenvolvimento Psicossocial de Erickson, e surgiu-me uma outra hipótese que diria mais sobre os netos que choram do que sobre a possível vida plena e longa dos avós ou da naturalidade do ciclo da vida. É que todos sabemos que muitas vezes choramos nos enterros não pela pessoa que morreu, mas pela nossa própria dor, às vezes dores antigas, pelo nosso medo da morte e pela angústia de saber que não vamos andar aqui para sempre.

Ora, segundo Erickson passamos por várias fases na vida onde tentamos equilibrar um grande conflito interno. Nos primeiros meses é a confiança/desconfiança. Pelos 2-3 anos baloiçamos entre o desejo de autonomia e a dúvida. Aos 4-5 anos, o grande conflito gere-se entre a iniciativa e a culpa enquanto na adolescência tentamos perceber quem somos, qual o nosso papel e para onde vamos. Como jovens adultos tentamos gerir o medo da solidão e a intimidade procurando perceber se somos amados e desejados. E na fase seguinte queremos deixar algo que dure: os filhos, o trabalho, algo que tenha valor.

Talvez, e só talvez, a fase em que nós nos encontramos determine também a forma como vivemos esta perda – que será maior ou menos consoante a relação que se teve, a culpa que se sentiu (fui visitar, não fui, sei que fui amado e aceite como sou ou gostava de ter tido mais tempo ou de ter sido mais autêntico, etc.). E, assim sendo, perder um avô durante a adolescência, em que tudo gira à volta do nosso umbigo, seria sempre diferente de o perder em que estamos orientados para cuidar, para valorizar as relações, a intimidade e a transgeracionalidade. Porque aos 30-40 já percebemos o valor que os avós têm. Já percebemos que algo se perde irremediavelmente quando morrerem.

Enfim, estou a divagar, o que sei é que ontem à noite sonhei — um daqueles sonhos que parecem mesmo, mesmo reais — que abraçava uma das minhas avós, e mesmo sabendo que ela era tímida e de ter pensado (no sonho) que podia ficar constrangida, dei-lhe um abraço gigante. Senti o corpo dela, reconheci-lhe o cheiro e disse-lhe que a adorava e que estava mesmo, mesmo, mesmo grata por ela estar ali comigo. Por isso se calhar vai ter que aceitar que as gémeas vão ficar inconsoláveis, ainda que continuem a viver, a amar e a rir, não porque não tiveram mãe mas porque tiveram uma avó do caraças.



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