CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 VAMOS CONCENTRAR-NOS NO NÚMERO 1
Publicado em: 15/06/2022
Neste últimos dias de calor insuportável lembrei-me, mais do que nunca, das palavras de Mário Draghi – “Queremos ter paz ou ar condicionado?”. Com pingos de suor de remorsos a cair-me pela cara percebi, melhor do que nunca, o que quis dizer. A lucidez do que anteviu. Porque é a mais pura das verdades: quando chega ao nosso conforto pessoal, à nossa vidinha, não é preciso mais do que dois ou três dias de sacrifícios para fugirmos deles, mesmo que signifique mandar às urtigas as boas intenções e promessas feitas. E não me estou a pôr de fora desta tentação, não estou a apontar o dedo aos outros, muito pelo contrário, isto é um mea culpa assumido.

Não é que não sejamos capazes de enfrentar obstáculos, fazemo-los todos os dias, alguns de nós com uma heroicidade de se lhe tirar o chapéu, mas tudo se complica quando o objetivo que pretendemos alcançar se torna tão inatingível ou distante que ficamos com a sensação de que o nosso esforço conta pouco ou, pior, pode ser em vão. Quanto mais tempo durar a guerra, quanto mais se afastar das fronteiras com a Europa, levando consigo o terror da bomba atómica, mais difícil é mantermos o nosso compromisso individual com os ucranianos.

As televisões e os jornais fazem um esforço extraordinário para manter a guerra visível, mas por não me ser possível espeitar as suas audiências, deitei um olho aos Google Trends, e o retrato é assustador. As pesquisas pela palavra Ucrânia/guerra na Ucrânia têm vindo a cair a pique, para números praticamente irrelevantes, tanto em Portugal, como na generalidade dos países europeus. Contrariando os preconceitos tantas vezes vigentes, o interesse norte-americano mantém-se muito mais elevado, com Washington à cabeça.

Quanto à palavra “refugiado”, também está próxima da extinção, e as buscas relacionadas com Vladimir Putin — de quem há tão pouco tempo queríamos saber tudo! — sofrem do mesmo desinteresse, ao ponto de, em Portugal, na semana de 5 a 11 de Junho, Putin suscitou tanta curiosidade como António Costa (perto de nenhuma).

Regressamos à “normalidade”, e se era previsível, não deixa de chocar: na segunda-feira, dia 13, o primeiro lugar do pódio das pesquisas foi para o Santo António, com mais de 10 mil, o segundo para “Bitcoin”, e o 3º para a Marcha da Madragoa, com os Manjericos a suplantarem a Guerra da Ucrânia, que figurou em 8º lugar, com apenas mil referências.

Que desespero. Nem quatro meses depois estamos a arrumar o “assunto”, dessensibilizando-nos progressivamente às imagens de cruzes a perder de vista, valas comuns e crimes de guerra, da morte de milhares de soldados, de milhões de refugiados. Enquanto isto, indigna-nos a subida do preço dos combustíveis e de tudo o resto, como se não fossem o outro lado da moeda das sanções que é preciso manter.

Como combater o vírus da indiferença? Talvez voltando ao único número que, dizem os cientistas, realmente motiva o nosso cérebro: o número um (1). A experiência foi feita e replicada: quando se pedem donativos para salvar uma vida, as pessoas são generosas, mas quando se fala em salvar duas, o valor oferecido mantém-se (ou seja, por cabeça, desce), se passar a três, torna a baixar e, caso falem de um campo inteiro de refugiados, é grande a probabilidade de a doação nunca se concretizar. Aparentemente, estamos programados para agir quando existe a expetativa de fazermos a diferença. Por egoísmo ou narcisismo, tendencialmente só nos envolvemos quando pressentimos uma gratificação emocional.

Se é assim que funcionamos, vamos então agir em conformidade. Se cada um de nós apostar numa pessoa/família, numa ONG concreta, na assinatura de um jornal ucraniano, por exemplo, já é qualquer coisa. Colados através desse gesto ao que se vive na Ucrânia, talvez de cada vez que calor nos bata à porta, sejamos capazes de responder com a paz à pergunta do primeiro-ministro italiano.