CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 SINTRA: UMA OPORTUNIDADE PERDIDA
Publicado em: 19/08/2022
Como é que é possível que um lugar Património Mundial há 30 anos continue a sofrer dos pecados mais básicos — filas intermináveis, estacionamento caótico, poluição e ruído dos tuk-tuks, que ainda não são obrigatoriamente elétricos.


O exercício de atirar pedras, mais virtuais do que calcárias, felizmente, é um desporto nacional em que somos exímios, sem sequer ter a vantagem de eliminar calorias, porque a maioria de nós continua com excesso de peso, como qualquer passeio pela praia pode comprovar. Suspeito que é porque a indignação faz correr adrenalina e, pelo menos durante uns momentos, quem dedilha insultos e se inflama com as suas verdades, sente-se mais vivo. Funciona, provavelmente, como antidepressivo. Depois, vezes de mais, voltamos a acomodar-nos no sofá, convencidos de que já demos o nosso contributo para um mundo melhor. A percentagem de portugueses que se envolvem diretamente na política, seja local ou nacional, participam em movimentos cívicos ou fazem voluntariado é abaixo dos 20 por cento, segundo dados do Portal de Opinião Pública, mas já aquela que se dedica ao comentário inflamado é infinitamente maior.

Mas muito pior é quando estamos calados. Quando vivemos numa bolha, indiferentes ao que se passa ao nosso lado. E se não podemos ir a todas, pelo menos que lutemos por algumas — uma das minhas causas é Sintra, há 30 anos classificada Património Mundial, na categoria Paisagem Cultural, mas ainda tão longe de ser tratada como merece. Por isso aqui fica, novamente, o meu protesto contra o estado do trânsito no centro histórico, com um nível de ruído e poluição inacreditáveis, um lugar onde apesar de tanta propaganda sobre pegadas carbónicas, os carros continuam omnipresentes. É de eriçar os cabelos assistir a uma ambulância ou um carro de bombeiros preso num engarrafamento, sem espaço para ultrapassar, a sirene a apitar em desespero, mesmo nos dias de calor extremo em que a autarquia tem a coragem e o bom senso de impedir o acesso de automóveis particulares à serra. E se tem sido feito um esforço de limitar o estacionamento, através da plantação de picoletos, esteticamente horripilante, mas eficaz, a falta de uma proibição clara de levar o carro para o centro histórico e envolvente, leva centenas de visitantes a tentarem a sua sorte, estacionando onde lhes dá na cabeça, frustrados e irritados e, mais grave, atentando contra a paisagem que valeu a Sintra a sua distinção – e inerente responsabilidade.

Por exemplo, como é possível que os tuk-tuk, e são centenas, não sejam obrigatoriamente elétricos, martirizando quem aqui vive ou passeia com o barulho constante dos seus motores, mais insuportável ainda num território de montes e vales? Nos escritórios, lojas, cafés, farmácias ou cabeleireiros de S. Pedro de Sintra, só para citar um dos lugares que enxameiam, é preciso fechar as portas para se conseguir ter uma conversa e o cheiro a dióxido de carbono deixa-nos sem ar. A que se soma, tantas vezes, uma condução louca, incitada pelos jovens turistas que imaginam estas viagens como uma experiência radical, e que põe em risco real quem transportam e quem está cá fora — o tuk-tuk capotado à porta de uma infeliz moradora foi disso exemplo recente, embora não o primeiro, nem certamente o último. Chegamos ao ponto dos próprios polícias e bombeiros nos pedirem “para fazermos qualquer coisa”. A sério, choca que um lugar como este continue a sofrer dos pecados mais básicos.

Mudou-se alguma coisa para melhor, é preciso dizê-lo, mas o problema estrutural persiste. E continuará enquanto não houver coragem de proibir o acesso automóvel, criando e impondo alternativas de mobilidade. Na verdade, podiam começar por corrigir a confusão da sinalização que deixa o visitante sem perceber para onde pode e deve ir, ao ponto de nalguns cruzamentos vitais as placas estarem colocadas após a viragem, como constatam os turistas que, sem saberem como, desaguam a quilómetros daqui.

Tudo isto desespera mais ainda quando se pensa na oportunidade que representaram dois anos de confinamentos, em que a pressão turística desapareceu. Se as medidas de fundo tivessem sido tomadas, a retoma poderia ter acontecido serenamente com o pé direito. Que desperdício.