CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 “ENCONTREI O ANTÍDOTO PARA A AMARGURA NA VELHICE”
Publicado em: 24/11/2022
Se há uma coisa que não quero mesmo, mesmo, mesmo, é que a idade me torne amarga. Daquelas pessoas que sente que está sempre tudo mal, que diz que antigamente é que era, vitimizando-se constantemente, lamentando-se de que ninguém lhe dá a atenção e o valor que realmente merece.

Tenho medo que seja uma doença contagiosa, de que nem uma máscara nos defende — pelo menos é o que às vezes me parece, a avaliar pela quantidade de gente zangada com que nos vamos cruzando e que à primeira oportunidade dão voz a um ressentimento acumulado, seja numa fila de trânsito, num corredor de supermercado, ou mesmo num jantar de família (com aqueles com quem ainda não cortaram relações, bem entendido).

Até me arrepio só de pensar que posso tornar-me numa daquelas avós que recebe os netos com um queixume de que nunca lhe telefonam; que protesta com os filhos porque "me deixaram para aqui esquecida", ou que depois de receber uma visita refila que "se era para ficares tão pouco tempo, valia mais não teres vindo."

Aí, meu Deus, e se fico como aquelas pessoas que no dia de anos fazem uma lista de toda a gente que não lhes telefonou a dar os parabéns, ou pelo menos mandou uma mensagem pelo Facebook, e que têm uma contabilidade rigorosa do Deve e Haver entre os amigos? A sério, nos meus piores pesadelos, imagino-me a resmungar por me oferecerem uma planta, lamentando que se tenham esquecido que já me custa muito encher o regador de água!

É claro que digo a mim própria que não corro este risco, consolando-me com os artigos científicos que asseguram que a amargura é como um fenómeno geológico em que a raiva e a desilusão se vão acumulando ao longo de décadas, camada sobre camada, até possuírem a vítima por inteiro, mas nunca fiando.

Por um lado, os nossos neurónios não vão para novos, e como me disse o neurologista e investigador Alexandre Castro Caldas, é fácil confundir idade com sabedoria. A certa altura sentimo-nos donos da verdade, quando na realidade estamos, mas é, casmurros e teimosos. Aparentemente, à medida que os nossos sentidos falham e os ouvidos, a visão e a mobilidade nos traem, passamos a recorrer mais e mais à nossa base de dados, feita de experiência acumulada. Só que a realidade que deu origem àquela informação já não se vai atualizando com a rapidez e a eficiência necessárias, o que não tem mal nenhum desde que sejamos capazes de escutar os outros e aprender com eles, em lugar de lhes querermos impingir certezas já datadas. E se assim for, tornamo-nos egocêntricos, melindrados porque não nos prestam a devida vassalagem, nem vêm em romaria pedir-nos conselhos e palpites. Pior, decidem à nossa revelia, o que nos deixa a sentirmo-nos excluídos e zangados. E a remoer.

Por outro lado, a solidão prega partidas e é fácil não sabermos pedir companhia de uma forma que não se assemelhe demasiado a chantagem emocional. Metemos na cabeça que compete aos outros adivinhar as nossas necessidades e vir ao nosso encontro e, quando falham — porque não são videntes! —, tomamos a coisa muito a peito, e ficamos magoados. Ui, e se temos o vício de ir comparar a nossa felicidade com a alheia nas redes sociais, então o caldo está entornado.

Felizmente há um antídoto eficaz para a amargura: a gratidão. Aprende-se desde o berço, de preferência pelo exemplo, molda-nos os circuitos cerebrais e acaba por funcionar como umas lentes de contacto especiais que nos ajudam a ver com mais nitidez as coisas boas. E as coisas boas, provocam-nos sentimentos bons, num circuito que se realimenta da confiança que depositamos nos outros, abrindo-nos para a vida e para novas oportunidades.

Estudos que o comprovam é o que não faltam: as pessoas que constantemente valorizam as suas graças são mais pacientes e menos agressivas, tendem a tomar decisões equilibradas, não explodem por tudo e por nada, dão o benefício da dúvida aos outros e, compreensivelmente, estão menos sozinhas, porque são melhor companhia para parceiros, amigos, filhos e netos. Existe até um investigador do sono que mandou os clientes que sofriam de insónias contar bênçãos – em lugar de carneiros — e concluiu que passaram a dormir muito melhor.

No entanto, é preciso lembrar aos amargurados que as pessoas gratas não são todas umas sortudas bafejados pela sorte, sem problemas, desgraças, perdas e lutos, que se a vida deles fosse assim, também não lhes custava nada. O que as diferencia não é a ausência de obstáculos e contrariedades, mas a capacidade de valorizarem as coisas boas e de agradecerem a quem lhas proporcionou, seja Deus, a Natureza, ou o vizinho do 4º esquerdo. Porque, além do mais, a partir do momento em que acreditamos que a nossa felicidade resulta de um gesto de terceiros, passamos imediatamente a fazer parte de um todo, de uma comunidade. Menos sozinhos.

Dito tudo isto, sinceramente não percebo porque é que importámos alegremente o dia de S. Valentim e o Halloween, mas nos esquecemos do Dia de Ação de Graças, que este ano calha a 24 de novembro. Mas ainda vamos a tempo. E se lhe passar pela cabeça que não tem nada a celebrar, atalhe caminho imediatamente se não quer – como eu não quero! – engrossar as fileiras dos amargos.