CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 A DIFICULDADE DE SABER ESCUTAR O OUTRO
Publicado em: 21/02/2023
Os nossos defeitos mais empedernidos são como as doenças crónicas, as mais difíceis de tratar, porque é preciso andarmos sempre em cima delas. E, a certa altura, esquecemo-nos do remédio à hora certa, achamos que já estamos bem e deixamos de o tomar, ou baixamos a guarda convencidos de que se não lhes ligarmos nenhuma essas doenças vão desaparecer por si só. Invariavelmente regressam e lá voltamos nós à estaca zero.

É claro que, no caso dos nossos defeitos, o primeiro passo é reconhecer a falha e aceitar que a culpa é nossa, sem procurar bodes expiatórios, habitualmente entre a nossa família mais próxima — a mãezinha é a favorita! —, que fez isto ou deixou de fazer aquilo. Mas, mesmo quando passamos ao nível 2, e admitimos o problema, as coisas não se tornam necessariamente mais fáceis. Nem se impedem recaídas.

Vou dar o corpo ao manifesto e avançar com um exemplo pessoal. Já sei, e torno a saber, que quando os meus filhos ou amigos me contam as suas mágoas me devo limitar a ouvir, resistindo a oferecer soluções. Sei que a minha ânsia de por um penso rápido na ferida, de dar um beijinho e dizer "Já passou", é um atalho que não leva a lado nenhum. E, no entanto, meto-me constantemente por ele adentro.

Aparentemente a intenção é a melhor, vê-los ficar bem o mais depressa possível, mas quando penso nisso a fundo percebo que aquilo que inconscientemente pretendo é sossegar rapidamente a enorme ansiedade que me provoca o seu sofrimento. Ou seja, antes de mais nada, é a minha tranquilidade que procuro, mesmo que mascarada de um gesto generoso. Mas o que, vez após vez, constato, é que as mil ideias prontas-a-usar que ponho em cima da mesa não fazem mais do que irritar ou frustrar o meu interlocutor. Não servem para nada, porque aquilo que pretendem de mim é que os escute, que lhes dê uma oportunidade de exprimirem alto o que lhes vai na cabeça e no coração. E isso implica ser capaz de os ouvir até ao fim, deixando-os ocupar o centro do placo, para só mais tarde oferecer sugestões, reconhecendo sempre que as soluções terão de ser encontradas pelo próprio. E que, provavelmente, serão muito diferentes daquelas que preconizávamos ou desejávamos para nós mesmos se estivéssemos naquela situação.

Mas um erro nunca vem só, ah pois não. E nesta história de saber escutar, há outros em que caímos facilmente. Quantas vezes, não nos armamos em fadinhas, desejosas de animar a vítima, de lhe provar que não está a ver o outro lado da moeda — "Ah coitadinha, o chefe mói-te a cabeça e é um bully terrível, mas se não tivesses emprego, era pior!"; "O teu filho está a dar contigo em doida? A adolescência é complicada, mas passa, enquanto uma doença fatal...", ou "Ele não te ajuda em casa? É incrível, mas imagina que te enganava com outra, não era bem pior?". A sério, o desejo de socorrermos alguém de um buraco negro pode levar-nos a dizer os mais absurdos disparates.

Esperem, temos ainda o clássico, "também já passei por isso" e que, num abrir e fechar de olhos, nos põe a falar da nossa experiência, supostamente idêntica (embora não tenhamos escutado a do outro até ao fim!), mas a que se soma uma vantagem, é que a nossa teve um final feliz e do qual, surpresa das surpresas, saímos vencedores. Ou a que, pelo menos sobrevivemos. Não o fazemos por maldade, o nosso objetivo é criar empatia, mas este chutar para canto do desabafo alheio tem uma probabilidade de nove em dez de dar para o torto, desvalorizando-o.

É isto e a tentação de interromper. As razões que nos levam a atalhar a conversa do outro podem ter as mais diversas origens, desde a voz monocórdica, ao excesso de detalhes, passando pela dificuldade em manter a atenção porque estamos desesperados por voltar a entrar em cena. Além do mais, viciados nos nossos telemóveis, habituados a saltar de assunto em assunto nas redes sociais, provavelmente perdemos concentração e foco.

Pois é, ouvir é uma arte mesmo difícil, exige prática e a capacidade de criar clareiras interiores que nos permitam estar mesmo disponíveis para o outro. E, se calhar, isso passa por encontrarmos primeiro quem nos escute a nós.