CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 O MILAGRE DA MULTIPLICAÇÃO DE RECURSOS
Publicado em: 26/04/2024
Não faço ideia se é por sede de protagonismo, se por excesso de meios ou pelo emaranhado das leis, mas o que é facto é que tudo o que mexe passa a ser imediatamente alvo dos procuradores que esgravatam incessantemente telefonemas, almoços, conversas, rotulando pessoas, empresas e políticos de perigosos criminosos, por vezes, apenas por terem feito aquilo que é suposto.


Cinquenta anos após o 25 de abril, quase ao dia, ninguém pode acusar o Ministério Público de ser uma instituição amorfa e que não dá nas vistas.

Estive a pensar com os meus botões, e não faço ideia se é por sede de protagonismo, se por excesso de meios ou pelo emaranhado das leis, mas o que é facto é que tudo o que mexe passa a ser imediatamente alvo dos procuradores que esgravatam incessantemente telefonemas, almoços, conversas, rotulando pessoas, empresas e políticos de perigosos criminosos, por vezes, apenas por terem feito aquilo que é suposto.

Pensando ainda mais um bocadinho, é um modelo que assenta que nem uma luva numa sociedade que viveu durante décadas em ditadura e onde o comportamento passivo dos cidadãos era glorificado e, consequentemente, aqueles que alguma coisa faziam por sua iniciativa eram vistos de soslaio. Alimentou-se assim a ideia, hoje firmemente arreigada, de que se alguém tem êxito na carreira, na política ou nos negócios é seguramente um golpista e um corrupto. Secretamente, os que não passam da cepa torta, murmuram “Caramba, que outra forma há de explicar porque é que esses gajos se safam e eu não?”

Outra modalidade de que o MP se pode orgulhar é a dos recursos judiciais, de que conhecemos na semana passada mais um episódio, que por acaso não correu muito bem.

Segundo parece, e vozes abalizadas confirmam, é prática sistemática do MP recorrer de todas as decisões que lhe são desfavoráveis ou que não vão inteiramente ao encontro do que pretendem. Fazem-no porque acreditam na verdade que defendem e porque não gostam de perder — quem gosta? —, mas sobretudo porque não pagam custas judiciais, o que os leva a acreditar que vale sempre a pena avançar com o processo mais um degrau, quanto mais não seja, para manter o presumível meliante a torrar em lume brando mais uns anitos.

Para um particular ou para uma empresa, a decisão de apresentar um recurso é sempre ponderada. Equaciona-se a probabilidade de êxito, e os custos e tempo envolvido, para daí concluir se vale ou não a pena avançar, independentemente de se considerar que se tem razão na causa. Por muito que doa darem-se por vencidos, sem que lhes seja feita justiça. Mas é exatamente para obrigar a esse exercício que as custas existem. Pelo menos é o que nos dizem.

Mas o que a maioria de nós esquece, e o MP faz por ignorar, é que somos nós, os cidadãos, a pagar a conta desta ausência de ponderação. O facto de serem os contribuintes a desembolsar os custos destas decisões e não os procuradores envolvidos deveria funcionar como um incentivo ao bom senso, e não um estímulo ao milagre da multiplicação de recursos. Esperem, esperem, mais do que isso — nestes casos, a reflexão e a ponderação deveriam ser muitíssimo superiores, já que lidam com o mealheiro coletivo. De onde resulta óbvio que qualquer decisão de o aplicar de maneira errada tem consequências para o funcionamento do sistema: o tempo e a “mão de obra” empregues desta forma são tempo e “mão de obra” que faltam para que outras ações se produzam em prazo útil. O MP deveria ser o primeiro a perceber que sempre que entope os tribunais com estas teimas está diretamente a contribuir para a lentidão de todas as decisões. Inclusivamente, as dos processos em que está particularmente empenhado, e que nunca chegam a conclusão nenhuma, desacreditando-o.