CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 A LUTA PELA RELEVÂNCIA NA VIDA DOS OUTROS
Publicado em: 03/05/2024
Há poucas coisas tão dolorosas como passar a segundo plano na vida de alguém de quem se gosta. Nem que essa desqualificação seja imaginária, resulte apenas de uma perceção errada, de um momento de fragilidade, de um descarregar de pilhas que nos deixa mais vulneráveis ou de uma antiga ferida que reabre, daquelas feridas que nem se sabe em que parte da alma se localiza. Ou porque é que lá está.

Tudo começa provavelmente no colo da mãe, quando há mais quem o queira ocupar, e continua no recreio do Jardim de Infância, no grupo de amigos em que o três parece um número fatal, porque os seres humanos parecem preferir díadas, e há sempre alguém que salta fora. Nem todos os dias é a mesma, e existem aquelas que, por uma qualquer arte, nunca perdem o lugar central. E outras que pouco se importam com estar dentro ou fora, com uma autoconfiança que mete inveja aos mais inseguros.

Na adolescência, este medo da irrelevância torna-se quase insuportável, e o ciúme explode de forma mais ou menos encoberta, contaminando agora não só a relação com "a melhor amiga", como as recém-descobertas paixões amorosas, que nunca parecem retribuídas, pelo menos na intensidade e na exclusividade que se sentia vital. Num enredo que se assemelha sempre ao das telenovelas, o João gosta da Mimi, que gosta do Carlos, que está apaixonado pela Cecília, e por aí adiante. E a dor é tão intensa e tão real, que de nada valem os conselhos e consolos dos adultos na sala, que insistem em pregar que vai passar, e que o futuro trará coisas melhores. Ui, como irrita, ouvir uma mãe ou um pai anunciar que há mais peixes no mar, quando se perdeu o único Nemo que se desejava.

E esta luta continua pela vida fora, mesmo no emprego — só se consegue sair da cama para picar o ponto, se por lá se tiverem amigos firmes, se naquele espaço se construíram relações e alianças que permitam que nos sintamos apreciados, valorizados, pelo menos na nossa equipa, no grupo que vai ao café. Se assim não for, vamos à mesma, que remédio, mas infelizes e desmotivados.

Depois vem o mais difícil: manter a relevância na relação amorosa que escolhemos. Uma tarefa ciclópica, não só porque pretendemos que a sua validade supere a de um ano escolar, ou mesmo de um contrato de trabalho, mas porque nos entregamos expondo a nossa vulnerabilidade, muitas vezes como nunca antes. Temos, por isso, muito a perder. E, convenhamos, o exercício de manter um lugar na primeira fila na vida de um outro — e a do outro, relevante na nossa —, sem perder a nossa individualidade e o nosso espaço, já é uma prova olímpica.

É um mar difícil de navegar, até porque está cheio de contradições, muitas delas inconciliáveis. Por exemplo, como conjugamos o desejo de que o outro dependa de nós, com a intolerância absoluta de que não tenha vida própria, e nos sufoque com a sua presença? Como gerimos a exigência de independência, com a dificuldade em aceitar que a nossa cara metade usufrua da dele, porque contra toda a racionalidade a sentimos como uma ameaça?

Se tudo correr bem, com o tempo vamos tornando-nos mais seguros. Mas a ânsia de relevância, essa, suspeito que só se apaga quando descemos à terra, e mesmo então, muitos são tentados a construir memoriais que assinalem a sua passagem pela terra. Será que no Céu, também pretendemos ser os favoritos de S. Pedro, ou de nos sentarmos à direita de Deus? Desconfio que sim, e acabo estas linhas a rir. Decididamente, só a capacidade de troçarmos de nós mesmos, impede que nos tornemos pessoas insuportáveis.