CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 ALMOÇOS PROIBIDOS NUM PAÍS GOVERNADO PELA BARRIGA
Publicado em: 22/05/2024
Decididamente a maneira mais prática e eficaz de avaliar a corrupção em Portugal era pesar os detentores de cargos públicos antes de tomarem posse e no momento em que deixassem o posto. A balança não mente.


A Relação de Lisboa acaba de dar uma machada mortal no “core” da alma portuguesa ao declarar, a propósito da malograda Operação Influencer, que é incorreto tratarem-se “assuntos de Estado à mesa de restaurantes”. Ouviram-se gritos de protesto. Queremos lá saber se os tipos foram enjaulados dias a fio sem sequer serem ouvidos, ou se lhes mancharam para sempre a reputação com fugas de informação para os jornais, ou outros detalhes de somenos, o que indigna é que se ponha em causa a possibilidade de trocar a enfadonha sala de reuniões por uma refeição bem servida e bem regada! Isso, sim, é um atentado às mais elementares liberdades, num país onde tudo de importante se passa à mesa, tudo o que é vital, se diz entre duas garfadas, como o pode testemunhar o presidente Marcelo Rebelo de Sousa.

Esta sentença, que seguramente nunca fará caminho para lei, teria o efeito, além do mais, de cortar a investigação do Ministério Público para metade, talvez até um terço, porque a maior parte do “material” acusatório anda à volta dos recibos das refeições deglutidas — há páginas inteiras a retirar ilações sobre as contrapartidas que se obtém caso a refeição seja de apenas 27 euros por pessoa, de 37 ou de 260 euros, num enumerar de restaurantes e marcas de vinho que deixa envergonhado o Guia Michelin. E, outras tantas, com a transcrição das conversas entre os suspeitos em que, como seria de esperar, os próprios discutem animadamente o que comeram na véspera, levando a presumir que quando falam de robalos ou garrafas de vinho se referem, na realidade, a envelopes recheados de notas.

Num país governando pela barriga, a perspetiva de se aturar a seco as diatribes do chefe sobre o novo projeto do aeroporto, o equilíbrio da dívida, as medidas para combater as alterações climáticas, ou como transformar a linha de caminho de ferro do Dr. Nuno Pedro numa pista de alta velocidade, é absolutamente inconcebível. E se toda a gente conhece o título de Milton Friedman que garantia que não havia almoços grátis, no pressuposto de que todos os benefícios implicam sempre um sacrifício, já os portugueses preferem manter-se fiéis à verdadeira origem da frase, que nasceu no Far-West americano do século XIX, referindo-se ao costume dos bares oferecerem refeições à borla aos clientes que pediam uma bebida, sabendo que a comida demasiado salgada os levaria a continuar a beber.

Quando às oito da noite, os noticiários abrem com o menu daquilo que o ministro ou presidente de autarquia deglutiu à conta de algum empresário em busca de “externalidades”, o espetador nacional começa a salivar e, apoderado pelos nervos, empurra para o lado o bitoque com ovo a cavalo que tem à frente, babando-se de inveja.

Haverá lá agora algum direito mais considerado e estimado do que o direito ao almoço, ao ponto de ainda há umas semanas o Sindicato Nacional do Corpo da Guarda Prisional ter apresentado queixa contra uma juíza do Tribunal de Beja que desrespeitou o horário de almoço dos guardas, obrigando-os a permanecer na sala de audiência até às 15 horas, com o vil intuito de acelerar um julgamento por Tráfico Humano que envolvia vinte reclusos perigosos — “Guardas sem comer para vigiar reclusos perigos”, titulava o Correio da Manhã, enquanto o JN anunciava “Guardas sem almoço”. Já tempos antes o Tribunal da Relação de Évora decidira que não se justificam serviços mínimos no período da hora do almoço dos funcionários judiciais.

Não, decididamente não se brinca nem com o almoço, direito previsto pelo artigo 213º do Código de Trabalho e que não pode ser inferior a uma hora, nem superior a duas, nem muito menos com a célebre instituição do “almoço de trabalho”, que além do mais é a desculpa padrão para apresentar a mulheres/maridos ciumentos, e o cenário paradigmático dos jornalistas que se queixam de terem sido “pressionados” por políticos e governantes.

Decididamente a maneira mais prática e eficaz de avaliar a corrupção em Portugal era pesar os detentores de cargos públicos antes de tomarem posse e no momento em que deixassem o posto. A balança não mente.