CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 "NÃO FAÇA O QUE NÃO QUER"
Publicado em: 05/06/2024
Desculpem, sei que o título parece panfletário. Idiotamente populista, porque imaginamos que se o aplicássemos à realidade o mundo ficava de pantanas e entre mortos e feridos não se safava ninguém. Mas à medida que envelhecemos, e envelhecemos a passo rápido, percebemos que não é bem assim. Se tivermos sorte, entendemos a tempo que aqueles ataques de ansiedade, ou mesmo de pânico, aquela tensão interna que nos faz sentir a implodir, e até aquele humor irascível em que não nos reconhecemos, resultam tão simplesmente de não sermos capazes de dizer Não a tanta coisa que não desejamos. Da dificuldade de suportar a culpa que nos provoca usarmos da nossa liberdade para decidirmos da nossa vida, sem que por isso nos vejamos ao espelho como pessoas egoístas e egocêntricas. Porque, na realidade, há tantas e tantas vezes em que dizemos que sim, mas começamos naquele exato momento a produzir ressentimento, daquele que não há antiácido capaz de combater — era bem melhor para todos que tivéssemos sido claros desde o primeiro instante.

Exemplo, tirado agora mesmo da cartola:

Ele quer que vão passar um fim-de-semana comprido com uns amigos, de quem você não gosta. Ou de quem gosta só médio. E ele sabe disso. Mas pede-lhe à mesma que gaste os seus três preciosos dias livres com eles.

Os seus neurónios agitam-se, e enquanto um bando defende que é injusto negar-lhe esse prazer, o outro argumenta que injusto é ele a ter colocado perante este dilema. Acaba por dizer que sim, porque ganhou o grupo dos remorsos antecipados, a que se somou o medo de o perder (e se ele vai sozinho e arranja outra por lá?!). E, por isso, lá faz a mala e parte, sempre em recriminações dentro da cabeça, com algumas bocas mazinhas pelo meio, que não foi mesmo capaz de conter. Aguenta um dia, ao segundo está uma pilha de nervos, se ao menos conseguisse chorar, aliviava, mas não consegue, só sente raiva. De si e dele, que a meteu neste sarilho. Aos poucos esquece-se que aceitou, começa a sentir que a obrigaram, e provavelmente explode e diz o que não pensa e aquilo que não sente realmente, confundido o ódio à situação, com o ódio a quem aparentemente a provocou. E está tudo estragado.

O que podia ter feito de diferente? Hum, colocar as cartas na sua mesa interior, consciente de que lhe é permitido não fazer o que não quer. Pensar sobre o que sente e concluir que:

1. Não vai mesmo. Haverá outras oportunidades, mas precisa daquele tempo para si, ou para estar com quem lhe apetecer. Assumindo a decisão com calma, será (espera-se) capaz de a comunicar ao outro de maneira serena. Sem desculpas, mas também sem acinte ou comentários depreciativos e críticas aos amigos dele, a que acaba por recorrer na tentativa de justificar a sua opção. Se tudo correr bem, ele vai e diverte-se, você fica e diverte-se, também, sem aquela pressão persistente no peito que a teria acompanhado se fosse contra vontade.

2. Tudo pesado e ponderado, conclui que prefere ir. Porque lhe custa sair de casa, mas depois faz-lhe bem, porque, afinal, vai também X ou Z com quem tem mais intimidade, porque pôs à partida algumas condições que mudam a equação, como tirar algum tempo só para si, em lugar de andar constantemente em grupo, de se deitar mais cedo, ou de reservar as manhãs para dormir ou escrever, etc. Mas, concluindo — e isto é que é importante — vai porque quer, desatando os nós e os laços antes da partida e não durante, ou até depois, numa lista de Deve e Haver para cobrar mais tarde ou como um crédito a usar futuramente.

Mas há obstáculos a este cenário arrumadinho e de resultado certo. Há obstáculos a uma decisão realmente livre, guerras que temos de travar connosco próprios e não com os outros. Confesso-vos algumas das armadilhas em que caio frequentemente.

A) Tendencialmente culpo o outro, marido/filhos/amigos/chefes, porque meto na cabeça que nunca deveria sequer ter-me feito aquele pedido. E não o deveria ter feito porque sabe, ou tinha a obrigação de saber, que odeio alturas, não gosto de almoços que nunca mais acabam, que estou cansada, assoberbada de trabalho, que já dei para aquele peditório, que vai custar-me recusar ou outro motivo qualquer. Odeio quem me pôs naquela situação e, no entanto, vou. E deito-lhe as culpas para cima, sem assumir a minha quota parte da responsabilidade no beco sem saída em que me meti. E, por vezes, a certa altura, o meu coração acelera e só tenho vontade de fugir, quero explicar, mas não encontro as palavras certas.

B) Meti na cabeça que as pessoas generosas têm sempre disponibilidade para os outros, e estão dispostas a fazer sacrifícios por elas, quanto mais próximas, mais generosa devo ser. Não gosto de me imaginar de outra maneira e, por isso, muitas vezes atropelo o que sinto. O que é uma estupidez, eu sei, mas leva-me frequentemente a enredar por uma birra mascarada, que é a pior de todas. E ninguém agradece o preço que sub-repticiamente obrigo os outros a pagar por não assumir o direito a não fazer o que não quero fazer.

Pronto, é muito mais fácil confessar-vos isto numa crónica, qual sessão dos "Incapazes de Dizer Não Anónimos", do que mudar, mas estou orgulhosa de algumas vitórias. É uma longa batalha interior que, basicamente, passa por acreditar que os outros gostam de nós como somos, e não pelos "favores" que lhes fazemos. Mas de cada vez que somos capazes de dizer um Não tranquilo, damos mais um passo para que se torne mais fácil. E, na maior parte dos casos, constatamos com surpresa que, afinal, o outro não se desfaz em pedaços com a nossa recusa, nem tão pouco deixa de nos amar por isso. Pois, às vezes, o problema também é imaginarmo-nos indispensáveis, temendo na realidade não o ser, mas esse assunto fica para uma outra conversa.