CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 EMPRESAS "BABYSITTERS"
Publicado em: 05/06/2024
A ideia de que é suposto gostarmos de trabalhar, ou de que é o trabalho que define a nossa identidade, é um fenómeno recente, explicou-me o filósofo Alain de Botton numa entrevista, depois de uma palestra em Lisboa sobre o assunto.


A Gallup revelou que o envolvimento dos trabalhadores nas empresas atingiu um mínimo em mais de uma década — reportam que apenas 23% (o número sobe para 33% nos EUA) se sentem “ativamente envolvidos” no que andam a fazer, o que significa que praticamente 80 por cento pertencem ou à categoria dos que picam o ponto porque precisam de pagar contas, ou aos “ativamente descontentes”, que não só estão insatisfeitos como corroem o ambiente em seu redor. O mal afeta sobretudo os mais jovens, e aqueles que trabalham a partir de casa ou num sistema híbrido, surprise, surprise.

Na verdade, não estranho, porque bastam cinco minutos de televisão para ouvir trabalhadores e dirigentes sindicais, das mais variadas profissões, a queixarem-se de que “não se sentem motivados”, como se a responsabilidade absoluta pelo seu desempenho profissional pertencesse a terceiros. Ao governo, ao ministério, à empresa, ao patrão, ao chato do chefe, ou a qualquer outro bode expiatório.

A ideia de que é suposto gostarmos de trabalhar, ou de que é o trabalho que define a nossa identidade, é um fenómeno recente, explicou-me o filósofo Alain de Botton numa entrevista, depois de uma palestra em Lisboa sobre o assunto. “Durante a maior parte da história da humanidade não havia a menor expetativa de que o trabalho fosse outra coisa senão uma terrível fatalidade”, sublinhou, e quem conseguia escapar-lhe, fazia-o. A perspetiva começou realmente a mudar no século XIX, em grande parte por Sigmund Freud ter concluído que a nossa felicidade dependia da realização profissional e do casamento, o que complicou imediatamente a existência a 60 a 80 por cento dos mortais que, obviamente, encontram frequentemente dificuldades numa ou noutra área, quando não em ambas, acrescentou, perante uma plateia que soltou uma gargalhada de alívio, por não fugir à regra.

Humor à parte, é um facto que a bitola está tão alta, que é grande a probabilidade de um jet-lag imenso entre o que imaginámos ser quando fossemos grandes e aquilo que realmente somos, acarretando com isso frustração e uma desvalorização da autoestima. Mas o que parece ter mudado nos últimos anos é a ideia de que compete sobretudo à empresa garantir essa felicidade — a lista de requisitos que a Gallup pede aos “líderes” das “equipas”, inclui acarinhar, apoiar, entusiasmar, elogiar e premiar os “colaboradores”, até porque senão, eles amuam, desistem e vão-se embora.

Se não posso ser mais a favor da alegria no trabalho, do respeito pelos direitos e bem-estar dos trabalhadores, que fazem bem em mudar-se para lugares mais ao sol, se tiverem a sorte de os encontrar, parece-me um pouco extremo imaginar que são os outros que têm a culpa de me custar tanto a levantar da cama para me apresentar ao serviço. Mas a falha maior parece ser não se entender que é exatamente o envolvimento que traz consigo a motivação — imaginar que possa cair dos céus aos trambolhões ou ser unilateral, parece-me infantil. E a ideia de empresas babysitter, um bocadinho assustadora.

Se calhar estou a ficar velha, mas ao ler este relatório fiquei com a impressão de que talvez não fosse mau recordarmos aquela frase do J.F. Kennedy – “Não pergunte o que o país pode fazer por si, pergunte o que pode fazer por ele.”