CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 TRAMADAS PELO “GROOMING GAP”
Publicado em: 19/06/2024
Estamos tramadas pelo “grooming gap”, a que devemos somar o custo da terapia porque não há autoestima que sobreviva a este esforço de agradar aos outros, com as redes sociais a subirem a bitola, e a implacável passagem do tempo.



A semana passada fui duas vezes ao cabeleireiro e uma vez pintar as unhas, mas, além disso, pentearam-me e maquilharam-me quatro vezes em quatro idas a programas de televisão. A ideia era parecer “arranjadinha”, de preferência bem conservada para a idade, não envergonhar a minha mãezinha que lá do Céu continua certamente a espreitar estas aparições com um olhar crítico e, claro, não destoar excessivamente do glamour das apresentadoras dos diferentes canais.

E esta foi apenas uma parte da operação, porque falta confessar que abri incessantemente o armário para pensar cuidadosamente sobre o que usar em cada ocasião, resolver o dilema sapatos/sandálias e encontrar colares que ficassem mais colados ao pescoço para não bater no microfone de lapela. Evidentemente que este esforço exige algumas provas e hesitações, agravadas pelo facto de que uma das minhas filhas, ou netas, me roubou exatamente o casaco que tencionava usar ou que a camisa de que precisava afinal está para lavar.

A certa altura, ao ver as horas escoarem sem saber onde as tinha empregue, tomei consciência de que enquanto no meu caso se tratava de um epifenómeno anual, este é o dia a dia das leitoras e entrevistadas do Jornal de Negócios, e a sina — em maior ou menor grau — de todas as mulheres em que o dress code é exigente, mesmo que de forma sub-reptícia. Mulheres extraordinárias que conseguem o milagre de picar o ponto às nove da manhã com o gelinho a brilhar nas unhas, apesar de já terem arrancado os filhos da cama e preparado lancheiras para a família inteira.

Imaginei então, num acesso de falsa modéstia, que acabava de descobrir a pólvora, pondo o dedo em mais uma ferida da desigualdade profissional entre sexos, mas bastou-me um “Google” para perceber que ando na lua, porque tudo isto não só está mais do que estudado, como até já lhe cunharam um nome: “The Grooming Gap”. Ou seja, o intervalo entre as exigências para homens e mulheres no que diz respeito à aparência física no local de trabalho.

Partilho convosco o que, entretanto, aprendi sobre o assunto:
1. Está provado que em quase todas as empresas há um código de vestuário implícito que é muito mais exigente com as mulheres do que com os homens.
2. Os sociólogos Jaclyn Wong e Andrew Penners descobriram que as mulheres fisicamente mais bonitas ganham mais 20 por cento que aquelas que não o são tanto. Mas, importante, concluíram que essa diferença se esbate se as menos favorecidas pelos deuses investirem na aparência (maquilhagem, cabelos, unhas e guarda-roupa), com o pequeno senão de que depois despendem o que recebem a mais nesse esforço de manutenção.

A tradução desta realidade em números também faz pensar.
1. Tempo: aparentemente as mulheres empregam 55 minutos do dia em cuidados de beleza, o que dá mais de um mês por ano deste verdadeiro “serviço comunitário”.
2. Dinheiro. Em 2023, a indústria cosmética foi avaliada em cerca de 500 biliões de euros, e representa um mercado em brutal crescimento. Segundo a Advanced Dermatology, as mulheres gastam por ano cerca de 877 euros em produtos e cuidados de beleza, enquanto os homens apenas metade.
3. Impostos. A constatação de que muitos produtos destinados a mulheres eram mais caros do que os mesmos produtos destinados a homens fez nascer o termo “Pink Tax”. Esta taxa cor-de-rosa já é “perseguida” em muitos estados norte-americanos e, por exemplo, em champôs e condicionadores chegava a ser de mais 40%.

A moral desta história? Estamos tramadas pelo “Grooming gap”, a que devemos somar o custo da terapia porque não há autoestima que sobreviva a este esforço de agradar aos outros, com as redes sociais a subirem a bitola, e a implacável passagem do tempo.