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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
OS PRECONCEITOS DA “TIA” DE LOBO ANTUNES
Publicado em: 09/10/2024
No instante em que lia as primeiras linhas do retrato de Aisha Nyandoro, veio-me à memória uma personagem de António Lobo Antunes: uma tia beta que pede ao senhor prior para lhe dar “um pobre”, mas regressa pouco depois à sacristia para pedir outro, porque aquele é muito mal-educado.
A revista Time anunciou a sua 100 Next List, a lista de novos líderes que estão a desenhar o futuro da humanidade e Aisha Nyandoro, fundadora de uma ONG de apoio a mães e especialista em combate à pobreza, é uma delas. O seu mérito foi provar que a melhor maneira de ajudar famílias em necessidade é colocar dinheiro vivo nas mãos das mães, sem burocracias ou condições.
No instante em que lia as primeiras linhas do seu retrato, veio-me à memória uma personagem de António Lobo Antunes: uma tia beta que pede ao senhor prior para lhe dar “um pobre”, mas regressa pouco depois à sacristia para pedir outro, porque aquele é muito mal-educado — quando lhe ofereceu umas moedas com a recomendação de que não as gastasse em vinho ou drogas, o beneficiado teve o desplante de responder torto, anunciando-lhe que, assim sendo, ia tratar de comprar um Porsche.
Para lá da caricatura, António Lobo Antunes pôs o dedo na ferida, porque se formos sinceros connosco próprios, teremos de reconhecer que, no fundo, no fundo, acreditamos que os pobres são pobres porque não tomaram as decisões financeiras corretas e, basicamente, não conseguem gerir as suas vidas, devendo ser orientados por instituições que lhes arrumam a casa. Aliás, a Time ressalva que esta convicção é das raras transversais aos dois grandes partidos norte-americanos.
Mas não é verdadeira. E comprová-lo é o grande mérito da experiência-piloto iniciada em 2018 por Aisha Nyandoro, em Jackson, no Mississippi e que já foi replicada a nível nacional com os inéditos cheques que retiraram milhões de crianças da pobreza durante a pandemia. Nyandoro começou por investir em programas convencionais de formação para pais, em ajuda alimentar, etc. e etc., mas sem grandes resultados, até que decidiu “perder tempo” a ouvir as mães. E o que as mães lhe disseram era que precisavam de dinheiro para resolver problemas concretos, que variavam de caso para caso. Elas sabiam do que precisavam, mas os fundos existentes para a luta contra a pobreza estavam canalizados para grandes obras ou entregues a instituições que usavam grande parte desses rendimentos em pessoal e burocracia, destinados a peneirar os que mereciam ou não mereciam apoio, implicando listas intermináveis de requisitos baseadas no pressuposto de que quem a eles recorre quer, basicamente, cruzar os braços e viver à conta (onde é que já vimos isto!).
Decidiu, então, tentar uma outra via e, em 2018, fundou o Magnolia Mother's Trust, entregando mil dólares por mês, durante um ano, a vinte mães, sorteadas aleatoriamente entre as candidatas, número que já vai em cem. Escreve a Time: “O modesto programa foi o primeiro projeto de rendimento garantido do século XXI e ninguém sabia o que esperar. Nem todas as mães floresceram — tirar as pessoas da pobreza raramente é um processo linear —, mas, na maioria dos casos, aconteceu. Pagaram dívidas, consertaram automóveis, puseram comida na mesa, inscreveram os filhos em atividades, investiram nos seus negócios e pouparam o que conseguiam. Foi-lhes dada uma clareira que lhes permitiu parar para pensar noutra coisa que não como pagar a próxima conta. A estabilidade permitiu-lhes planear.”
Mas Aisha Nyandoro vai mais longe: para ela, a verdadeira chave deste sucesso é a confiança depositada nas mães, a dignidade que lhes é devolvida. E é esta a semente que a Time acredita que funcionará como antídoto contra preconceitos como os da “tia” de Lobo Antunes.
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