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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
AFINAL O GOVERNO É CONTRA O AUMENTO DA NATALIDADE
Publicado em: 20/11/2024
Este chorrilho de contradições, pelo seu absurdo, faz suspeitar que o que realmente incomoda os deputados e o governo ao ponto de traírem o seu próprio programa e os seus eleitores é a coisa ter surgido por iniciativa dos cidadãos – como é que esses gajos se atreveram! — e não das suas próprias cabeça.
Quando o PSD e o CDS se recusaram a votar a rara Iniciativa Legislativa de Cidadãos que propunha o aumento da licença parental de quatro para seis meses fiquei de boca aberta — como é que era possível que os dois partidos que mais gastam as cordas vocais a defender a família se “cortassem” a seguir o seu próprio programa eleitoral que linha sim, linha não, declara “o aumento da natalidade como desígnio nacional” (sic), e a proteção das crianças e dos pais como um dos seus dez mandamentos?
É que a “Lei Carina Pereira”, o nome da autora desta iniciativa e que tragicamente morreu antes de a ver aprovada na AR, foi precisamente uma mãe que não se conformou com a contradição entre a recomendação da OMS que prevê a amamentação exclusiva até aos seis meses do bebé e a obrigatoriedade de voltar ao trabalho antes disso, se não tiver rendimentos que lhe permitam outra estratégia. Uma mulher que, com o apoio de especialistas chamados por várias vezes ao Parlamento, deixou evidentes os benefícios dessa alteração, num ganho global calculado em milhões de euros.
Para as centenas de pais e mães que encheram as galerias do Parlamento no passado dia 27 de setembro, o mais difícil estava feito, bastava agora acertar o como e o quando. Tinham a veleidade de acreditar que apesar da oposição feita na AR, o governo recordaria as promessas feitas, mas terão começado a desconfiar quando o Negócios anunciou que a medida derraparia (pelo menos) para 2026, e logo a seguir se depararam com a notícia de que o “Governo prevê que nova licença parental provoque desemprego.” Lendo mais, ficavam a saber que o Ministério do Trabalho e Segurança Social enviou à Comissão Parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Inclusão, um relatório com dois cenários sobre o impacto da medida. Segundo as suas contas, pode custar ou 228 ou 408 milhões de euros — a diferença de 176 milhões estará correlacionada com enigmáticas “alterações comportamentais” e “efeitos de segunda ordem”. Mais ainda, afirmam que “pode ter efeitos adversos na ligação dos progenitores ao mercado de trabalho, especialmente para aqueles que detêm contratos ou situações laborais menos estáveis", porque isto, já se sabe, os inspetores não podem estar em todo o lado, ficando-se com a ideia de que a função do Estado não é fazer cumprir a lei, mas avisar as vítimas.
Mas de onde veio esta certeza ministerial de que mais dois meses de licença parental aumenta o risco de se ir para o olho da rua? As notícias não dizem, mas os técnicos com quem falei e os estudos em que tropecei, nomeadamente os de Lucy Strang e Miriam Boreks, da RAND Europe, indicam precisamente o contrário — a haver algum perigo, este será para quadros superiores que podem, eventualmente, perder temporariamente alguma progressão na carreira. Quanto às vantagens, são incontáveis, permitindo para além de uma amamentação mais prolongada, que os pais fiquem com os filhos sem perder rendimento, atrasando a entrega do bebé a uma creche, poupando também ao Estado que a comparticipa; e, ainda, menos dias de baixa para assistência a família, redução da morbilidade infantil, menos consumo de medicamentos e de leite artificial. Não me parece que nada disto esteja refletido nas estimativas avançadas.
Mas mais. Esse mesmo estudo também identifica uma correlação positiva entre a duração da licença e o aumento do número de filhos. O que assentaria que nem uma luva no que o programa da AD promete: “É fundamental promover a natalidade e incentivar as famílias a terem mais filhos, garantindo-lhes condições de vida digna e oportunidades de desenvolvimento.”
Este chorrilho de contradições, pelo seu absurdo, faz suspeitar que o que realmente incomoda os deputados e o governo ao ponto de traírem o seu próprio programa e os seus eleitores é a coisa ter surgido por iniciativa dos cidadãos – como é que esses gajos se atreveram! — e não das suas próprias cabeça. Assim alguém se admira que as pessoas se afastem da política e desacreditem na democracia? Não me lixem e, sobretudo, não lixem as (poucas) crianças que, cinicamente, dizem querer proteger.
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