CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 SÓ GANHA EM DESCONFIAR UM BOCADINHO MAIS DE SI PRÓPRIO
Publicado em: 03/12/2024
Ando às voltas com a palavra "Confiar". Quer dizer, não é propriamente uma questão de ortografia, embora sabe Deus como a ortografia em geral me atrapalha, mas com o conceito. Se amo alguém, se a respeito e admiro, então confiar devia ser mesmo simples. Mas, às vezes, não é assim e esse facto enche-me de perplexidade.

Pior, eu sei, sabemos todos, como nos magoou quando as pessoas à nossa volta não confiaram em nós, nas coisas pequenas, como por exemplo quando nos ligam vinte vezes a perguntar se nos esquecemos do mais pequeno na creche ou se guardámos o bilhete de avião na carteira mas, pior ainda, nas coisas grandes, como na altura de um casamento, divórcio ou de mudança de emprego. Como é que é possível que imaginem que tomámos uma decisão tão importante de ânimo leve, ou que não ponderámos mil vezes o efeito que uma separação teria sobre os nossos filhos, como é que é possível que eles, que nos conhecem tão bem, acreditem por um instante que agimos por impulso, pondo em risco a nossa segurança financeira, ao decidir "saltar" de uma empresa para outra?

Mas é exatamente por termos consciência como a falta de confiança fere e dói que procuramos não agir da mesma forma e, no entanto, há situações em que não conseguimos passar um cheque em branco. Em que não conseguimos olhar o outro nos olhos e dizer: "Tomes a decisão que tomares, tenho a certeza de que é a decisão certa!" que "Escolhas a pessoa que escolheres, é seguramente essa a que mais te convém".

Na melhor das hipóteses evitamos o assunto e, com sorte, conseguimos calar o nosso juízo mas, a verdade, é que não enganamos ninguém e, se calhar, o nosso silêncio, o içar involuntário das sobrancelhas, fere mais do que uma discussão acesa, sei lá eu. O que sei é que essa incapacidade culpabiliza e provoca remorsos.

Venha então daí a "Confiança", para a colocarmos numa lâmina sob a lupa do microscópio. Há medida que a ampliamos percebemos que é formada de muitos fios, alguns mais grossos e determinantes do que outros, tecida ao longo do tempo, com marcas de avanços e recuos, e pequenos e grandes nós e rasgões que correspondem a momentos em que os outros pensaram, sentiram ou agiram à revelia das nossas expectativas ou desejos. Ups, será que só confiamos quando o nosso amigo/namorado/filho/colega de trabalho é feito à nossa imagem e semelhança? Será que a confiança que depositamos nos outros é sempre condicional, dependendo de que se comporte como acreditamos que nos comportaríamos na mesma situação? É que, sendo assim, é batota. Primeiro, porque significa que, na realidade, nos consideramos uma bitola moral, o que corresponde a dizer que verdadeiramente só confiamos no nosso próprio discernimento, e, em segundo, porque o nosso julgamento baseia-se na presunção de que possuímos toda a informação para uma decisão correta, o que não acontece quando a decisão é tomada por terceiros. Provavelmente não sabemos realmente nada sobre o casamento da vizinha do lado, nem sobre as qualidades do namorado da nossa filha com que embirramos, nem a verdadeira natureza do chefe que o nosso amigo abomina.

Mas há mais. Segundo a filósofa Onara O'Neill, que escutei numa Ted Talk sobre o assunto, usamos a palavra confiança de forma demasiado lata. Quando querem saber se confiamos nos políticos, nos professores, nos jornalistas ou, mesmo, nos amigos, deveríamos, antes de mais nada, perguntar: "Em qual deles?" e, logo depois, "Para que tarefa, especificamente?" Porque é sensato desconfiarmos da sopa de uma irmã que não distingue uma cenoura de uma batata, e não entregarmos uma carta que precisa de ir urgentemente para o correio a um filho que se esquece de tudo, mas o que tendemos a fazer é generalizar, atirando fora (da nossa confiança) o menino e a água do banho.

O que nos leva direitinhos ao ponto seguinte: generalizamos porque estamos demasiado seguros das nossas primeiras impressões, dos nossos sentimentos e emoções, a nossa intuição. Mas será que essas certezas viscerais são de confiar? De maneira nenhuma, dizem os especialistas. Ao contrário do que pensamos, não vemos a realidade através de um vidro limpinho e transparente, mas de um vidro fosco e cheios de ângulos mortos, como aliás já nos alertavam os céticos gregos há milhares de anos.C Custa mesmo acreditar que o que nos parece tão evidente, não o seja. Mas não é mesmo, garante o filósofo Alain de Botton, que nos implora que percamos mais tempo a esmiuçar as nossas opiniões, tão dependentes do humor do momento, a calar os nossos juízos precipitados e a escrutinar as nossas certezas.

Ou seja, a moral desta história é qualquer coisa como: "Desconfie um bocadinho mais de si próprio, para confiar mais nos outros."