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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
ACORDAR DO LADO ERRADO DA CAMA (OU COMO REVERTER O MAU HUMOR)
Publicado em: 18/12/2024
Acordei assim. Rabugenta, quero dizer. Rabugenta e impaciente, e com vontade de implicar com toda a gente, ou pelo menos com aqueles com quem faço menos cerimónia e cujas represálias são modestas. Não sei bem traduzir por palavras esta impaciência irritada que me torna a pior candidata a fazer um embrulho (quero lá saber se o papel tem vincos ou se a etiqueta está de pernas para o ar), a pendurar bolas na árvore, ou a espalhar pelas hostes um clima de alegria. Hoje, ao pé de mim, o Grinch é um anjo, porque se seguisse os meus impulsos rasgava já a página de dezembro do calendário e açambarcava todo o açúcar dos supermercados para que ninguém pudesse fazer rabanadas e, muito menos, sonhos.
De onde veio esta trovoada, se ontem à noite me deitei uma pessoa normal? Se fosse antigamente, atirava a culpa para as hormonas, que são capazes de induzir insanidade temporária na mais sensata das pessoas, mas com esta idade nenhum tribunal me absolveria com um argumento cientificamente tão fraco. Mas a verdade é que os sintomas são iguais — será que é um efeito secundário do creme das rugas que, realizando o milagre que anuncia na embalagem, me fez voltar atrás no tempo uns vinte anos? Olho-me ao espelho, confirmo que a pele do pescoço talvez esteja um bocadinho menos flácida – ou "iluminada" como dizem —, mas decididamente não ao ponto de levar o estrogénio e a progesterona ao banco dos réus.
A rabugice só se agrava com a constatação deste facto. Tomo nota, entretanto, que senti algum alívio ao matar com um tiro certeiro da palma da mão, nada menos do que duas moscas que não paravam de varejar à minha volta, trazidas à vida pelo calor da lareira. Será delas a culpa do meu estado de espírito, ou foram apenas infelizes bodes expiatórios?
Não ajudam, de certeza, mas o mal é mais fundo. Não me resta outra hipótese senão recorrer à sabedoria popular, concluindo que todos estes sintomas, inclusivamente este nevoeiro de sonolência que me toma, se devem ao facto de me ter levantado do lado errado da cama. Faço uma pesquisa na internet, na tentativa de perceber qual é, afinal, o lado errado do meu objeto favorito e constato pelas milhares de referências ao assunto, que metade da humanidade dorme com os pés de fora, poe o pé errado no chão, ou salta da cama pela "sinistra", que quer dizer esquerda em italiano, que por sua vez se tornou sinónimo de diabólico — causa ou consequência, não faço ideia. Ao que parece a superstição é coisa de Césares que, por sua vez, a receberam dos povos indo-europeus que rezavam virados para o sol que se erguia no céu pela manhã, o que significava que a sua mão esquerda ficava a norte, lugar onde acreditavam ficar o reino dos mortos. Os canhotos levavam por tabela, e os imperadores romanos até empregavam criados com a função exclusiva de confirmar que os convidados lhes entravam em casa com o pé direito.
Isto tudo aprendi na internet, e muito mais, porque há um leque infinito de explicações para os efeitos maléficos de abandonar as nossas queridas almofada, e muitas delas quase, quase, foram capazes de me levar a esboçar um ligeiro sorriso, o que no estado atual do meu humor, é obra.
Pois, há quem afirme que a "ciência" descobriu que o corpo humano é rodeado por dois campos magnéticos, uma na direção da cabeça para os pés e o outro dos pés para a cabeça. O primeiro é a base da nossa existência e, o segundo, define a nossa energia e força. De onde concluem que quando alguém acorda do lado direito aumenta o fluxo de energia. Infelizmente esta pseudociência só agrava a minha sintomatologia.
Mato mais duas moscas, e decididamente ajuda.
Sigo para a próxima interpretação: um problema de alinhamento de Chakras. Peço desculpa aos entendidos se estou a confundir tudo, mas a tese parece ser que os "Nadis", ou canais condutores da energia, podem ficar bloqueados, e como o Surya Nadi está localizado no lado direito do nosso corpo, se nos levantarmos para esse lado facilitamos o fluxo e ativamos este reservatório de energia, favorecendo inclusivamente o processo digestivo. Certo, não custa experimentar, mas por agora escolho umas almofadas de chão para dormir uma sesta ao sol, na esperança de reverter o feitiço que me ensombra: talvez se adormecer e voltar a acordar, consiga reinstalar o sistema operativo. Se ninguém me acordar e as moscas me deixarem em paz, há uma forte probabilidade de que acorde a contar o "Adeste Fidelis". Vamos ver.
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