CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 PERFECCIONISMO: SEM UMA BRECHA A LUZ NÃO CONSEGUE ENTRAR
Publicado em: 27/01/2025
Passo a vida a recriminar-me por não ser perfecionista, por preferir acabar a tarefa em tempo útil, mesmo se certa de que com mais tempo, mais cuidado, mais atenção o resultado seria melhor. Sempre aleguei em minha defesa que o jornalismo diário não permitia estes devaneios — o jornal tinha de seguir para a máquina e da máquina para as bancas, sem atraso — mas, na verdade, o que provavelmente aconteceu foi que usufrui da oportunidade de me treinar para enfrentar a inevitabilidade de ter dias mais e dias menos inspirados. Nessa altura, consolava-me com a ideia de que por aquela hora as páginas já estariam a forrar a gaiola dos periquitos ou a servir de cartuchos para castanhas fumegantes o que, bem vistas as coisas, era um exercício de humildade.

Dito isto é claro que desesperava, e continuo a desesperar, quando cometo um erro, quando não atinjo as metas a que me propus, mas a minha autoflagelação não chega ao ponto de me impedir de voltar a arriscar. Com a idade, aumentei a compaixão por mim mesma e pelos outros, mas também a consciência de que é preciso fugir da "Doença da Perfeição", que paralisa, provoca um enorme sofrimento e não dá grandes frutos. Cresceu, também, a consciência de que "Nunca lá vou chegar", o que por seu turno aumenta a admiração por todos os (muitos) que conseguem melhor.

Mas se cá me vou safando, afligem-me as notícias de que o perfecionismo se tornou numa epidemia entre adolescentes e jovens, que confessam que o medo os cola à cadeira, num sofrimento aterrador. Que depois de um esforço desumano, acabam por sucumbir à ansiedade e à depressão, com a autoestima de rastos.

À primeira vista, pensaria precisamente o contrário: nunca na história da humanidade prestámos tanta atenção às crianças que, felizmente no mundo ocidental, conhecem menos carências do que as de gerações anteriores e andam numa escola supostamente mais benevolente com as dificuldades. O que se passa?

Explicações não faltam, nem investigadores decididos a analisar o fenómeno à lupa. Que está ligado a um traço de personalidade é seguro, como podem testemunhar todos os pais de um perfecionista no meio de uma trupe de filhos a quem até não fazia mal nenhum um bocadinho mais de brio. Como é igualmente fácil entender que o cenário só pode ficar mais complicado se a essa tendência natural juntarmos pais igualmente perfecionistas — e nem é preciso que sejam exigentes com as crianças, basta que o sejam consigo mesmos, porque os mais novos são como esponjas e tomam-nos como exemplo para tudo. Idem aspas no que diz respeito à autocritica destrutiva, esse grilo interior falante que não só se herda, como se copia.

Soma-se, dizem os entendidos, o caldo cultural individualista em que vivemos e que as redes sociais exponenciaram, em que se acendem os holofotes e se dá palco aos sucessos (exaltados) e aos insucessos (castigados) de cada um de nós, num caminho cruelmente solitário e assustador. Esta competição contagiou os pais e a própria escola, com a ameaça constante de que sem notas excelentes nada se faz na vida — ameaça que começa quase na creche! —, e que, por ironia, ressoa muito mais num bom aluno do que num mau. Que ninguém subestime o efeito sobre um perfecionista quando um professor que lhe diz que "está triste" porque o viu descer dos 100% para os 95% (ou seja para que percentagem for).

Mas, esperem, há mais armadilhas. Por terem medo de desiludir (sobretudo as raparigas), ou de perder na corrida (sobretudo os rapazes), os perfecionistas tendem a fugir dos desafios o que, lá está, lhes rouba simultaneamente ocasiões de interiorizarem a probabilidade estatística de falhar.

E agora, por fim, chega a tese do filósofo Alain de Botton, fundador da School of Life. É um ângulo diferente porque, para ele, o problema não está no desejo da perfeição, mas no facto de subestimarmos a dificuldade em atingi-la. Na maior parte dos casos orçamentamos por baixo o projeto em que nos envolvemos, ou seja, não contabilizamos com realismo o tempo e o esforço necessário para o concretizar. Depois, quando demora e surgem obstáculos, atribuímos o problema à nossa inaptidão pessoal. Ou julgamos ter posto a fasquia demasiado alta. Mas não é nem uma coisa, nem outra. Segundo Botton, é urgente que quem chegou à meta não esconda o "processo" que o levou até lá, fale sem rodriguinhos do longo caminho, da paciência e da resiliência investida, dos altos e baixos, dos erros cometidos e superados, tornando mais transparente o enorme intervalo entre aquilo que imaginámos e o que é objetivamente possível conseguir. Parece um bom caminho.

A mim ajudam-me duas coisas, de que vou fazer o meu mantra em 2025:

1 - No Islão medieval os artistas acreditavam que se apenas Deus é Perfeito procurar a perfeição absoluta era pecado. É por isso que nas suas maravilhas arquitetónicas como, por exemplo, o Alhambra de Granada, ou no alcácer de Sevilha vai encontrar sempre um erro num painel de azulejos ou num arco deliberadamente assimétrico.

2 -As palavras do "Anthem" de Leonard Cohen: "Esqueça a oferta perfeita, há uma brecha, uma brecha em tudo. É assim que a luz consegue entrar".

Nota – Veja aqui o vídeo animado da School of Life.