CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 DONALD TRUMP E A BANALIDADE DO MAL
Publicado em: 28/02/2025
Alguém me explica porque é que ainda há jornalistas na sala de imprensa da Casa Branca, caladinhos e ordenados a tomarem notas dos delírios de Donald Trump, depois de o Presidente dos EUA ter dali expulsado a Associated Press, por esta se recusar a acatar a mudança arbitrária do nome de um golfo?


Alguém me explica porque é que ainda há jornalistas na sala de imprensa da Casa Branca, caladinhos e ordenados a tomarem notas dos delírios de Donald Trump, depois do presidente dos EUA ter dali expulso a Associated Press, por esta se recusar a acatar a mudança arbitrária do nome de um golfo? Como é que não saíram em peso quando Trump justificou a decisão com um embrulhado discurso na terceira pessoa, que só me lembra o Gollum do “Senhor dos Anéis”. Disse, e cito, “A Associated Press, como sabem, esteve muito enganada sobre as eleições, sobre Trump, e outras coisas relacionadas com Trump, (...) e não nos está a fazer nenhum favor. E eu também não lhes faço nenhum favor. É assim que funciona a vida!”

É assim que funciona a vida?! Pelos vistos tem razão, porque não se ouviu sequer um burburinho na sala. Aqueles jornalistas implicitamente admitiram que a liberdade de imprensa é isto, uma troca pessoal de favores. O que a sua passividade deixou claro é que estão disponíveis para chamar as coisas pelos nomes a que Trump lhe der na cabeça chamar-lhes, divulgando a realidade alternativa que Trump decidir criar, ostracizando quem não seguir a matilha. E não são apenas eles que o fazem, mas também os grupos de comunicação que representam.

É verdade que cerca de 40 agências noticiosas assinaram uma carta de protesto da Associação de Correspondentes da Casa Branca, mas os jornalistas continuam a comparecer obedientemente nas conferências de imprensa quando tinham na mão a forma mais eficaz de retaliar contra este abuso de poder: deixar de dar voz a Trump, sabendo que se há coisa que Trump mais abomina é que não lhe prestem atenção.

Indigno-me sobretudo porque são jornalistas com um Código Deontológico que conheço bem, mas admito que não reagem de maneira muito diferente de tantos outros dentro e fora dos EUA, sempre com a justificação de que não se ganha nada em enfrentar o touro pelos cornos, que é melhor contornar os problemas do que marrar de frente, alegando que não se podem quebrar as pontes, que há que manter o diálogo porque senão é pior. Iludem-se com a ideia do seu próprio poder, supondo-se suficientemente convincentes parar levar um bully como este a mudar de opinião, ou, mais provavelmente, encontram para si mesmos uma ótima desculpa para não se colocarem em risco. Todos conhecemos o sentimento “porque é que hei de ser eu a sacrificar-me?”, mas a verdade é que são aqueles que agem, apesar do medo, que conseguem travar o mal.

O fenómeno já foi mais do que estudado, mas dá jeito ignorar reflexões passadas. Einstein declarou que ”o mundo não será destruído por aqueles que praticam o mal, mas por aqueles que os observam e não fazem nada”; Hanna Arendt criou o conceito da “Banalidade do Mal” — como é fácil convencermo-nos de que se nos limitamos a cumprir ordens não temos nem responsabilidade, nem culpa, pelas consequências do plano que vem de cima —, e o psicólogo Philip Zimbardo, autor da famosa experiência de Stanford, comprovou que é muito fácil tornarmo-nos ferramentas do mal quando nos sentimos desresponsabilizados. O seu “Efeito Lúcifer” explica porque é que em determinado caldo social e institucional pessoas normais cometem atos desprezíveis.

Decididamente, andamos todos a precisar urgentemente de frequentar um curso do Heroic Imagination Project, que o mesmo Zimbardo criou na esperança de que, compreendendo melhor as forças psicológicas que nos podem levar a passar de bestiais a bestas, consigamos encontrar a força e a resiliência para um gesto heroico. Porque, defende, os heróis não nascem heróis, aprendem a sê-lo todos os dias, preparando-se perante obstáculos pequenos e grandes a conseguirem dizer não, quando toda a gente diz sim. Decididamente, era mais fácil ter no bolso um torrão de criptonite, mudando de jornalista para super-homem numa cabine telefónica, mas a coragem que a vida exige é bem mais complicada do que isso. Mas é a que realmente salva o mundo.