CRÓNICAS E ENTREVISTAS

 COM TODA A GRATIDÃO A QUEM ME DEIXA SER AVÓ
Publicado em: 12/01/2015
Há momentos de comoção pura, e que nos modificam para sempre. O nascimento da Carmo e da Madalena, em agosto de há quatro anos, foi um desses marcos, que define um antes e um depois na minha vida. Como quatro anos de crónicas na Pais&filhos atestam.
No editorial do primeiro número desta revista, que considero um bocadinho minha, lá longe nos anos 90, escrevi que depois de ter um filho nunca mais se dorme, pensa ou vê o mundo da mesma maneira. Essa é a revolução interior mais marcante, que nos permite, no segundo em que olhamos pela primeira vez os nossos netos, regressar tão depressa à paixão absoluta. Enquanto que as recém-mães tateiam uma nova emoção, sobreviventes da experiência única mas avassaladora de um parto, e os recém-pais se dividem entre a mãe e o bebé, e se confrontam com a enormidade da responsabilidade de um filho, nós temos a vantagem de viajar para território já conhecido e conquistado. Não admira que nos tornemos reféns daqueles bebés à velocidade da luz.
O caminho que se segue não é, no entanto, tão linear. Nem tão simples. Depressa descobrimos que, desta vez, somos apenas retaguarda, que o nosso papel é o de ajudar aqueles pais a serem pais e não o de nos armarmos em “sabes-tudo”, sempre prontos a dar uma lição, ou a explicar como se faz. Percebemos, rapidamente, e com alguma dor, confesse-se, que estes bebés não são “nossos”, no sentido em que não decidimos as suas vidas, nem controlamos o seu dia a dia.
Escrevo isto e as memórias voltam. Lembro-me tão bem de estar de fora do quarto da Ana, dois bebés prematuros lá dentro, sem saber se devia bater à porta ou voltar para a cama fingindo não ouvir aquele choro (das três!). E ainda me rio, e choro, quando penso no dia em que, depois de quatro semanas em nossa casa, regressaram à deles e os vi partir com uma tristeza imensa e a vontade de cantar aquela música da Ágata, “podes ficar com as joias, o carro, e a casa, mas não fiques com ele”. Neste caso, elas.
Mas se é duro deixar escapar um bebé, com aquele cheiro que faz acordar as hormonas mais adormecidas e que se aconchegava ao nosso colo como se sempre lhe tivesse pertencido, não é mais fácil gerir o medo de que passaremos a ser figuras irrelevantes na sua vida, sobretudo hoje quando há tão poucos netos para tantos avós, tantos adultos para tão poucas crianças, e em que o seu mundo tenderá, felizmente, a aumentar em tamanho e gente.
Depois tudo começa a assentar. Aprendem o nosso nome, pedem para vir a nossa casa, e aos poucos a nossa relação torna-se única, com memórias que só nos pertencem. Os pequenos-almoços na cama passaram a ser território exclusivo entre mim, a Carmo e a Madalena, com torradas e sumo de laranja, assim como certos livros de histórias, o jogo da princesa ervilha e os seus sete colchões, os lanches com a D. Laura, e os passeios a pé pelos campos, que vão mudando tão depressa como elas. Hoje, quando as vejo sentadas a ver televisão, aconchegadas numa manta, mesmo no dia de maior calor, tenho a certeza de que há rituais que passaram de mãe para filha e de filha para netas. Sinto que quando ficam connosco, se sentem seguras e felizes, numa rotina que já conhecem, e espero que o entusiasmo por ajudar o avô a cozinhar ou a pintar um alpendre se mantenha para sempre.
Mas sobretudo, tenho consciência de que só somos avós porque os seus pais nos deixaram ser avós. Porque nos confiam a sua guarda, porque nos dão a oportunidade de criarmos com elas uma história só nossa. Sob o nosso olhar na terra ou no céu, vão crescer com um bocadinho de nós dentro de si.
Não há gratidão que chegue para saldar essa dádiva de eternidade.