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CRÓNICAS E ENTREVISTAS
SIM OU NÃO MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO
Publicado em: 24/03/2015
É um triângulo difícil, em que parece impossível harmonizar os vértices: o casal infértil que deseja um filho, os interesses da mãe portadora e os do bebé que vai nascer. O quebra-cabeças da Gestação de Substituição discute-se na Assembleia da República, mas também nas páginas da Máxima. Conheça os dois lados da questão e decida por si.
Instrumentalização da mulher. “Coisificação” da criança. Exploração do corpo. Liberdade de escolha. Querer ser mãe biológica. Não é um debate prioritário, deve começar-se por agilizar, por exemplo, a adoção em Portugal. Há mil argumentos e opiniões como estas, pró e contra a gestação de substituição, vulgarmente conhecida por barrigas de aluguer. O tema entrou na agenda pública quando os grupos parlamentares do PS e PSD concordaram num projeto de lei comum que previa a possibilidade de realizar em Portugal esta técnica de procriação medicamente assistida, em casos muito específicos. Ou seja, apenas casais heterossexuais em que a mulher não tem útero ou, tendo, é incapaz de desenvolver uma gravidez até ao fim, poderiam recorrer a outra mulher para
que durante nove meses fosse hospedeira do bebé, que biologicamente não lhe pertencia. Dizia o artigo 8.º do projeto de lei que a mãe portadora teria de se comprometer a entregar a criança após o parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade e que, assim sendo, a criança que nascer é tida como filha do casal que contrata (gratuitamente) os seus serviços. Com dois terços dos votos no Grupo de Trabalho, e a votação contra do CDS-PP e do PCP, aparentemente a lei estava garantida, mas, em janeiro deste ano, o PSD inesperadamente recuou, inviabilizando-a. O projeto não chegou, portanto, a “subir” ao plenário da AR, mas há promessas de que estará de novo na agenda na próxima legislatura.
Contudo, muito mais do que um debate circunscrito aos deputados, esta é uma discussão ética e civilizacional, a que nenhum de nós pode fugir. A Máxima quer contribuir para o debate, com dois textos, um assumidamente a favor e outro decididamente contra a gestação de substituição. Afinal, para ter opinião, é necessário, antes de mais, conhecer o que está em causa.
A FAVOR DO SIM
O poder de concretizar um sonho
São umas quantas dezenas os casais que não podem ter filhos porque as mulheres não têm útero ou não conseguem desenvolver a gravidez até ao fim. Se tiverem algum dinheiro, vão aos Estados Unidos, se tiverem menos vão à Índia. Se não tiverem, a Lei portuguesa impede-os de serem pais biológicos, mesmo quando a ciência lhes abre essa porta. Este projeto era para elas.
Aos 42 anos, deitou a toalha ao chão. Dois abortos espontâneos depois, os médicos tiraram-lhe a pouca esperança que tinha de vir a ser mãe biológica. Pelo menos pelo processo normal: mesmo com um embrião viável, o seu útero nunca geraria um bebé. Útero fibroide com danos irreparáveis. Shelley Peterson, norte-americana, aceitou falar com a Máxima. Contou-nos como a adoção não pode ser colocada na discussão das “barrigas de aluguer” que, em Portugal, tem antes o nome de “gestação de substituição”.
Também o nome evoluiu desde que a discussão desta técnica de procriação medicamente assistida começou no Parlamento, contam Miguel Santos, do PSD, e Luísa Salgueiro, do PS, dois dos relatores do projeto de lei que ficou pelo caminho, pelo menos para já. Por indicação do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) e do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, em vez de maternidade de substituição, o termo adequado é gestação de substituição”. Porque, para os dois organismos e também para os deputados, a maternidade excede a dimensão do parto. E começa logo aqui um dos problemas que alimenta os opositores e aqueles que acham que o assunto ainda carece de debate.
Instrumentalização da barriga de aluguer, “coisificação” da criança, exploração comercial dos mais desfavorecidos. Eis os mitos, preconceitos e sensacionalismos associados à discussão, acusa quem defende a introdução desta técnica na Lei da Procriação Medicamente Assistida. Tudo entraves, dizem, a uma discussão centrada no que é essencial: dar às famílias a possibilidade de aceder a uma técnica que já existe e que lhes permite concretizar o sonho de serem pais. “É esse o papel do legislador”, diz a deputada Luísa Salgueiro. Em Portugal, estima-se que sejam algumas dezenas de casais na mesma situação. Uma minoria, dirão alguns. Bastava que fosse um, dizem outros.
Com o diagnóstico na mão, restavam duas hipóteses a Shelley para concretizar o sonho de ser mãe. Adotar e prescindir da sua carga genética e do seu marido ou recorrer a uma barriga de aluguer, uma gestante de substituição, já que nenhuma das outras técnicas de procriação medicamente assistida era viável no seu caso.
Para Shelley tudo foi relativamente fácil, já que na Califórnia esta opção está prevista na Lei. A barriga de aluguer era amiga de uma colega de trabalho. “O processo correu muito bem para nós. Tivemos várias reuniões para nos conhecermos e termos a certeza de que estávamos confortáveis, nós com ela e ela connosco.” No caso de Shelley, o óvulo e espermatozoide eram seu e do marido pelo que consideram que é um filho 100% biológico. No início do processo consultaram uma psicóloga, mas não houve acompanhamento porque não era a primeira vez que aquela barriga de aluguer carregava o filho de terceiros, o que trouxe alguma segurança ao casal. “Queríamos ter a certeza de que ela era fisicamente capaz e emocionalmente estável para hospedar o nosso filho.” Chama-se Finley, tem cinco anos e a primeira vez que o viu estava na sala de partos. “Quando peguei nele ao colo pela primeira vez, senti o que todas as mães sentem nesse momento: invadida de amor.”
O risco de se contarem os casos individuais dos temas fraturantes para a sociedade é a dificuldade de manter a perspetiva do todo. Foi assim com os outros processos de mudança: a interrupção voluntária da gravidez que levou dez anos a ser legal entre o primeiro chumbo e a última votação que a legalizou, os casamentos entre homossexuais, os casos pendentes como a coadoção por casais homossexuais e, provavelmente em breve, a eutanásia. No caso da estação de substituição, foi o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida que recomendou que a Lei fosse revisitada para incluir nas técnicas de procriação medicamente assistida a gestação de substituição.
NÃO É PARA QUEM QUER, É PARA QUEM PODE
Não são as mulheres que não querem passar pelas transformações de corpo que uma gravidez implica, nem os homossexuais que passam a poder ser pais sem prestar provas (embora esta discriminação da orientação sexual seja, também ela, altamente questionável). Não. Contra as generalizações fáceis, o Presidente do Conselho Nacional de PMA, o juiz Eurico Reis, explica a quem é dirigida esta Lei: “Mulheres que não têm útero ou que, tendo útero, este não é capaz de desenvolver a gravidez.” Isto pode acontecer porque a mulher simplesmente nasceu sem útero, sofreu de uma malformação congénita ou como efeito secundário de cancro no útero. “São cada vez mais as mulheres que sobrevivem ao cancro do útero que querem ter filhos e nascidos a partir dos seus próprios ovócitos”, acrescenta. Uma resposta aos argumentos fáceis e mitos que acreditam que as mulheres optariam por uma gestante simplesmente por não quererem desenvolver, elas próprias, a gravidez.
O projeto que acabou por ser posto na gaveta por falta de apoio suficiente quer no PSD como no próprio PS, mas que muitos esperam que volte ao topo da lista na próxima legislatura, reserva a casais heterossexuais, casados ou em união de facto, há pelo menos dois anos, a possibilidade de recorrerem a esta técnica de PMA. A razão é simples, como explica o deputado Miguel Santos, do PSD: “A Lei da PMA já limita o acesso a qualquer técnica a este universo. Nós
só estávamos a acrescentar a gestação de substituição, logo mantêm-se as mesmas condições.” Mais à esquerda, Luísa Salgueiro remata: “Mais vale aprovar alguma coisa que nada.” Somam-se as recomendações do Conselho de Ética e do Conselho Nacional de PMA, que foram tidas em conta na elaboração do projeto. Quem lê o projeto, questiona-se. Onde estão protegidos os direitos da gestante? E do casal? E, porventura mais importante, da criança? N regulamentação que ficaria a cargo do Conselho Nacional de PMA. Caberia a este órgão elaborar um modelo de contrato que estivesse enquadrado na Lei e que carecia da aprovação do próprio, como acontece, de resto, noutros países, como Israel, onde a gestação de substituição é legal.
Junta-se à discussão o parecer do Conselho de Ética, que tem a assinatura do constitucionalista Jorge Reis Novais e do obstetra, professor de Bioética e diretor clínico do Centro Hospitalar de Lisboa, Miguel Oliveira e Silva. “Nos projetos de lei em apreciação, a gestação de substituição é concebida para situações absolutamente excecionais e com requisitos de admissibilidade estritos, o que, em grande medida, retira às propostas muito do caráter controverso que o tema gera em abstrato.” E sublinha as precauções que foram tomadas para que o debate se mantenha centrado no essencial e não em ideias preconcebidas e erradas. No seu parecer, destaca que é ilegal o pagamento de qualquer soma à gestante que não esteja relacionado com as despesas inerentes ao processo. Com esta condição, fica garantida “a natureza exclusivamente altruísta” destes acordos.
Mais a mais, qualquer casal candidato a recorrer à gestação de substituição teria de passar no crivo do Conselho Nacional de PMA e da Ordem dos Médicos. E aqui as regras são apertadas. As recomendações dos dois organismos dão igualmente resposta aos piores receios sobre a possibilidade de se recorrer a esta técnica, nomeadamente casos em que há malformações do feto ou em que a gestante tem reservas a meio do processo (ver caixa).
O projeto de lei português é bastante mais conservador do que a Lei que regula a gestação de substituição nos Estados Unidos. Shelley Peterson gastou cerca de 45 mil euros no processo e apenas parte serviu para pagar as despesas médicas. Uma parcela importante foi exclusivamente compensação financeira que a gestante aplicou no pagamento das propinas da Universidade de um dos seus filhos. Aqui a discussão da gestação de substituição torna-se ainda mais polémica, mas importa lembrar que não está sequer em causa esta dimensão em Portugal. Nem a agenda homossexual, que tende a dominar igualmente o debate e a gerar a irredutibilidade dos mais conservadores.
E A CRIANÇA E A GESTANTE?
Restam os interesses da criança. Estará a salvo de uma vida de stress emocional? A psicóloga Maria João Rio diz que sim. “O vínculo dos pais a um filho gerado por uma barriga de aluguer pode ser tão forte como se fosse uma gestação normal e pode também ser comparado a uma adoção em que o sentimento é igualmente forte. A personalidade da criança é determinada pelos afetos e emoções. Os aspetos genéticos têm um papel muito reduzido.” Como na adoção, a recmendação do Conselho de PMA vai, igualmente, no sentido de estabelecer que a criança tem o direito a saber como foi concebida. “Tal como na adoção,
tudo tem de ser explicado e deve ser acompanhado até se perceber que a criança sabe lidar com essa circunstância”, acrescenta Maria João Rio.
Os defensores do não preocupam-se, legitimamente, com o vínculo que quem emprestou o útero desenvolve, eventualmente, com o bebé. Os pareceres tanto do Conselho de PMA quer do de Ética são unânimes: até ao parto a gestante pode mudar de ideias. Mas, por chocante que seja para as mães tradicionais, não
é forçoso que o vínculo se estabeleça, diz Maria João Rio. “Se a barriga de aluguer vir o seu corpo como objeto, não está predisposta a estabelecer laços afetivos com o feto e, por isso, não vai ligar-se ao feto, apesar de ser responsável pela gestação.”
À memória vem, igualmente, um argumento forte usado aquando da discussão da Interrupção Voluntária da Gravidez, recordado, a propósito da gestação de substituição, pelos deputados Luísa Salgueiro e Miguel Santos: as dezenas de casais portugueses que já hoje recorrem à gestação de substituição. “Os que podem mais vão aos Estados Unidos, outros ao Brasil e à Índia. Isto já acontece e não devia ser uma questão de dinheiro.”
O CASO DE SHELLEY PETERSON
Shelley foi mãe, através de uma gestante, aos 42 anos. O Finley sabe que é filho de uma gestante de substituição e há contactos regulares entre o casal e a gestante. Foi a terceira vez que a gestante emprestou o útero a um casal e fê-lo, diz, porque gosta de ser mãe e acha que deve proporcionar o mesmo a quem não pode. Recebeu de Shelley e do marido cerca de 42 mil dólares, que serviram para despesas médicas mas também como compensação monetária, legal nos Estados Unidos. Usou esse dinheiro para pagar as propinas da Universidade de um dos seus próprios filhos.
AS LEIS DOS OUTROS PAÍSES
> ESTADOS UNIDOS A gestação de substituição é permitida apenas em oito Estados e, nos restantes, são omissos ou proíbem expressamente.
> ISRAEL Depois de muitos anos de acesa discussão, a gestação de substituição é hoje legal mas sujeita a um apertado controlo por parte dos órgãos reguladores e pelos tribunais. Permitida apenas quando o espermatozoide é do pai e o óvulo da mãe ou de um dador que não a gestante.
> ÍNDIA A gestação de substituição é legal na Índia, onde não há restrições à prática desta técnica em troca de compensação financeira. A Índia tornou-se, aliás, um “destino de fertilidade” amplamente procurado pelas condições pouco restritivas que impõe aos casais nacionais e estrangeiros que querem seguir esta via.
ALGUMAS RECOMENDAÇÕES DA CNPMA E DO CONSELHO DE ÉTICA
> A gestante pode revogar o contrato até ao início do parto e a criança considerada filha da gestante para efeitos sociais e jurídicos.
> No contrato deve estar prevista a situação de uma IVG ou disposições a observar em caso de malformação.
> A gestante não pode ser a dadora do ovócito.
> Motivações altruístas da gestante devem ser analisadas.
> Não pode haver uma relação de subordinação económica entre a gestante e o casal.
AFAVOR DO NÃO
“Abandono por receita médica”
Os defensores do Sim não falam nem de mãe, nem de bebés, mas de “gestação de substituição”, de “casal beneficiário”, de gâmetas e embriões, e, claro, de “negócios jurídicos gratuitos”. Afastam o assunto da realidade e da experiência de quem os ouve. Tentam torná-lo frio e aparentemente irrefutável, resultado da ciência, sem qualquer ligação àquilo que as mulheres experimentaram como mães, ao sentimento que testaram durante nove meses, ao amor que têm pelos filhos que deram à luz. Num debate televisivo, a deputada Maria Antónia Almeida Santos, do PS, perante a possibilidade de uma mãe de substituição se poder arrepender, comentava: “Porque é que uma mulher havia de querer ficar com um filho de outro casal, quando pode gerar os seus?” Pois!
Num segundo passo, fazem chantagem. Se fôssemos boas pessoas, não privávamos outras mulheres daquilo que nos dá tanta felicidade. E pessoalizam o caso, como se quem não concordasse desejasse mal à pessoa A ou B, desprezasse o seu sofrimento. Exemplos deste maniqueísmo não faltam. Na discussão dos projetos de lei apresentados na AR, a deputada Ângela Guerra, do PSD, conseguiu a ovação dos seus colegas ao dizer que “ser mãe foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, foi o sentimento mais bonito que alguma vez percecionei”, para acrescentar: “Não se poderá cortar o direito de outrem alcançar a sua felicidade.” Enquanto Mónica Ferro, do mesmo partido, garantiu que “a solidariedade (...) é o que aqui está em jogo”. Na mesma linha veio António Serrano, do PS, dizer que se “trata de autorizar o estabelecimento de relações altruístas e solidárias”. Depois vêm os argumentos explícitos do Sim, que o Não rebate.
NOVE MESES CONTAM
Aos que legitimam o aluguer de um útero quando é pago em afeto, a prestigiada fundação francesa Terra Nova, um think-tank progressista independente que publicou um extenso documento de reflexão sobre “Mães portadoras”, responde: “Quanto a gestação para o outro é autorizada no quadro do círculo familiar, alegando que o ‘dom’ sem contrapartidas pode assim ser melhor assegurado, esquece as pressões afetivas e familiares, sem dúvida mais eficazes para as mulheres em causa: a chantagem afetiva entre irmãs, por exemplo, com a consequência para aquela que se recusa a incorrer depois na reprovação permanente de um membro da sua própria família. E os conflitos entre casal beneficiário e mãe portadora terão consequências ainda mais graves porque afetam a suas relações familiares.”
Teresa Caeiro, do CDS-PP, partido que votou contra esta possibilidade, foi a voz dessas gestantes de substituição: “Temos dúvidas em relação à salvaguarda dos direitos da mãe de substituição, às consequências para essa mãe de ter de abdicar de uma criança que se desenvolveu dentro dela durante nove meses.”
Bernardino Soares, do PCP, que rejeitou igualmente a gestação de substituição, afirmou: “Na maternidade de substituição intervém de forma profunda (...) uma outra mulher. O que introduz um conjunto de potenciais conflitos e questões éticas que não podem ser ignoradas.”
Mas veio de Teresa Caeiro o protesto contra o facto dos projetos não preverem as situações de arrependimento da gestante de substituição: “E se a mãe de substituição, ao longo dos nove meses de interação biológica, genética e afetiva com o feto e face às modificações que nela se operam, se recusar, compreensivelmente, a abdicar da criança no momento do nascimento?” A verdade é que no projeto de lei final não surge esta possibilidade, ficando a sugestão da Comissão Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), que ia nes se sentido, presumivelmente para regulamentação posterior.
A EXPLORAÇÃO DO CORPO DA MULHER
O número de europeus que recorrem a barrigas de aluguer nos países mais pobres, seja da Ásia ou dos países de Leste, é crescente. Conscientes da fonte de rendimento que representam, muitos destes países ou legislaram a favor ou fecham os olhos aos casais que através de agências contratam mães para transportar o seu embrião, recolhendo a criança ao fim de nove meses.
Os defensores do Sim argumentam que é preferível que o aluguer de barrigas seja feito em Portugal, utilizando o estafado argumento de que, neste momento, apenas os ricos podem ir contratar e pagar a outros países, avalizando, afinal, barrigas de aluguer pagas que nos seus discursos dizem nem considerar. Os membros do Terra Nova, de que fazem parte muitos deputados socialistas, estranham que a esquerda francesa embarque na defesa da “mercantilização do corpo feminino, conduzindo a uma nova exploração, radical, de mulheres pobres”, numa lógica “profundamente reacionária para os direitos das mulheres porque implica uma instrumentalização do corpo feminino”.
Teresa Caeiro não pode estar mais de acordo e aproveita para rebater aqueles que comparam esta situação à da adoção: “Quando uma criança é abandonada ou maltratada pelos pais, procuramos dar-lhe a melhor vida possível, a tragédia é pré-existente, mas como é que nós, legisladores, asseguramos que esta criança, que vai ser gerada sob a tutela do Estado, com a responsabilidade do legislador, não vai ser apenas um objeto de controvérsias, de problemas jurídicos e de disputa em tribunais?” Um ponto incontornável, dizem os defensores do Não.
“NA MINHA BARRIGA MANDO EU.” E AGORA?
Ao alugar um útero e aceitar que o casal que contrata os seus serviços pode ditar os seus comportamentos, como fica a questão do aborto, do “na minha barriga mando eu”? Nos EUA, e na Ásia, as mulheres cedem esses direitos no momento do contrato, mas em Portugal os projetos não esclareciam nada a este respeito, nem tão-pouco o projeto de lei final, tendo sido chutada para “sede de regulação”. Bernardino Soares, do PCP, alertou: “O peso das questões e das incertezas levantadas pela sua introdução – aliás, bem patente no facto de vários projetos remeterem essas complexas questões para uma regulamentação que não se sabe como vai ser feita! – é demasiado significativo para ser ignorado (...).” Já os pensadores do Terra Nova são veementes: “Dar poder a outros sobre a gravidez de uma mulher pode ameaçar o direito ao aborto.”
A CRIANÇA NÃO É UMA MERCADORIA
O pedopsiquiatra Marcel Ruffo põe o dedo na ferida: “Não podemos permitir que a criança se torne uma mercadoria.” No debate parlamentar, Teresa Caeiro disse isso mesmo: “Temos dúvidas quanto à garantia de que se preserva o superior interessa da criança – e eu confesso que li e reli a vossa iniciativa e a exposição de motivos e constatei que em nenhum momento fazem referência ao direito à realização individual da criança, ao direito à felicidade da criança.”
Mais ousados ainda, seis psicanalistas franceses, entre eles Jean Pierre Winter e Myriam Szejer, garantem que os riscos para a saúde mental da criança são grandes no livro "Abandono por receita médica – Manifesto contra a Legalização das Mães Portadoras", e a quem fui roubar o título deste “manifesto” a favor do Não(*). Afinal, perguntam, que sociedade é esta em que o tratamento para um problema médico é “receitar” o fabrico de uma criança que se destina a ser abandonada nove meses depois...
“SE VAI SER UMA COUVE, NÃO A QUERO!”
Aos defensores do Não, não faltam casos da vida real a provar que não basta fazer leis, por muito bem-intencionadas que sejam, e cruzar os dedos na esperança de que tudo corra bem. Agosto de 2014, o bebé K faz as primeiras páginas dos jornais do Reino Unido: uma “gestante de substituição” de gémeos revela que a mãe beneficiária recusou uma das crianças porque “não queria uma couve”, levando a gémea saudável. O acordo, num país que não permite pagamentos, mas apenas compensação de despesas, era de 15 mil euros. A mãe portadora ficou com a criança, que está a criar com os seus outros filhos. O caso surgiu pouco depois do famoso Baby Gammy, em que um casal australiano abandonou à mãe de aluguer tailandesa o gémeo com síndrome de Down, levando consigo a gémea saudável. Já o bebé M ficou famoso nos EUA, numa disputa legal sem fim, porque a mãe de aluguer quis ficar com a criança, sendo processada pelo casal que comprara os seus serviços. Mas basta um Google para encontrar bebés em disputa com todas as outras letras do alfabeto...
“LÁ FORA FAZ-SE.” IMPORTA-SE DE REPETIR?
Um dos argumentos constantemente usados é o do “lá fora faz-se”, como se fôssemos uns pacóvios que recusam a modernidade. Não é assim. Na Europa, a Grécia aceita plenamente esta prática, mas a Bélgica e o Reino Unido só em moldes completamente diferentes do projeto de lei português: a criança é sempre da mãe que a deu à luz (Mummy-Tummy como dizem os ingleses), mesmo não lhe pertencendo o património genético, podendo depois de nascer ser “adotada” pelo casal.
DISCURSO DIRETO
EDUARDO SÁ
Psicólogo, psicanalista e professor universitário, estuda a gravidez e a relação entre a mãe e o feto.
“NA GRAVIDEZ, MÃE E BEBÉ TORNAM-SE DOIS VELHOS CONHECIDOS QUE SE SENTEM E DESCOBREM UM AO OUTRO”
O bebé tem uma vida mental muito antes de nascer?
A partir da metade da gravidez o sistema nervoso do bebé já é sofisticado. Além de sensações e de emoções, tem uma memória que regista, sem parar, todos os acontecimentos de vida, e que o vai formatando, em suaves prestações. Para além do mais, adequa-se aos estados mentais da mãe com os quais dialoga e
forma bioquímica e comportamental. Tornam-se, portanto, todos os dias, dois velhos conhecidos que se sentem e descobrem um ao outro. Diante de tudo isto, o nascimento do bebé, tal como desde sempre falámos dele, é muito mais uma realidade obstétrica do que psicológica. Um bebé nasce, psicologicamente, muito antes de nascer, num plano obstétrico.
O que significa que o estado psicológico da mãe influencia o bebé que se desenvolve dentro dela?
A ponto de ser, hoje, claro que alguns dos “defeitos de fabrico” de que fomos falando (como se uns bebés nascessem, naturalmente, calmos e outros indisfarçavelmente agitados, por exemplo) acabarem por ter na gravidez um peso muitíssimo mais relevante do que muitos foram pensando. Assim, há bebés que, em função do estado emocional da mãe, nascem agitados e há bebés que nascem deprimidos, por exemplo. Sabê-lo ajuda-nos a estarmos atentos à vida emocional dos pais e do bebé. Mas, sobretudo, obriga-nos a prevenir muito antes de remediar.
Quando nasce o bebé “prende-se” à voz, ao cheiro da mãe que conhece...
Quando nasce, de um ponto de vista obstétrico, o bebé agarra-se aos ritmos, aos sons (voz incluída) que conhece desde o útero. Daí que o parto não seja bem um tiro de partida para uma relação porque, na verdade, um bebé (com os milhares de milhões de neurónios a funcionar e com redes sinápticas que, entretanto, se foram “tecendo” na relação gravídica com a mãe) nunca nasce com o conta-quilómetros a zero e nunca tem na mãe uma absoluta desconhecida.
Faz sentido dizer que a “gravidez de substituição” de “maternidade não tem nada” porque o embrião não é geneticamente da mulher que o transporta?
Gostava muito que ninguém confundisse um embrião com um feto e jamais baralhasse seriedade com populismo, humanidade com ideologia e, já agora, biologia com relação. Toda e qualquer gravidez que transforme uma gravidez numa gestação estritamente biológica (indiferente, portanto, ao bebé que habita esse T0 que é o útero da mãe) é uma gravidez de altíssimo risco para a saúde mental do bebé, pelos danos que trará aos primeiros dois meses de vida extrauterina do bebé. Ignorar tudo isto não é nem sábio nem prudente.
Acusam quem discorda de não entender o sofrimento de uma mulher que não pode ter filhos.
O desafio de um Estado, assente no Direito em vez de se ancorar numa lei divina, passa por alcançar, de síntese em síntese, fórmulas jurídicas onde se compatibilizem os direitos dos mais diversos cidadãos. Não será, pois, digno de um Estado de Direito que o sofrimento de uns se alivie através
da promoção do sofrimento de outros.
Argumenta-se que é um “gesto de amor”.
Amor e indiferença não casam. Amor por alguém e indiferença por outrem não ligam. Não há como ligar. Mas, já agora, seria altura de perguntarmos se será um valor de esquerda – e eu sou, como sabe, um homem de esquerda – instrumentalizar ou promover a exploração de pessoas mal informadas, mal escolarizadas e financeiramente carenciadas por uma classe média que tem ao seu dispor quer as condições quer os recursos que as mães-hospedeiras, dramática e injustamente, nunca terão...
Outro argumento constante é que sem lei os casais têm de ir ao estrangeiro alugar úteros...
Havendo cidadãos que contornam a lei portuguesa e falam e exibem os bebés de mães-hospedeiras que foram buscar à Índia ou à América Latina, por exemplo (sejam futebolistas ou não), acho inacreditável que a Procuradoria não atue em conformidade, como devia. Porque um Estado que ignora foras-da-lei não se respeita a si próprio.
Uma mulher sabe, à priori, como é que se vai sentir numa gravidez, que laços vai tecer com aquele bebé?
Nenhuma gravidez é planeada! Por mais que os pais tenham essa ilusão. E por mais que o discurso manifesto de quem está grávido o dê a entender. Quem, com sensatez, assina um acordo em como se compromete que nos próximos nove meses da sua vida garante um controlo emocional, afetivo e relacional, sabendo que tudo isso não depende só de si? E quem garante, nove meses antes, não se apaixonar, não se relacionar e remeter-se a um “voto de silêncio”, por um período como esse, independentemente dos privilégios com que a vida o premeie?
Eduardo Sá é autor do livro "Psicologia do Feto e do Bebé", resultado de uma investigação sobre a relação da grávida com o bebé e vice-versa.
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