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JUN
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 ENTREVISTA A ISABEL STILWELL NA VISÃO
"Nós, os mais velhos, temos uma noção do tempo diferente da dos mais novos. Não poder ver um neto é uma coisa irrepetível. Tirarem-nos esse tempo é uma sensação de vazio e de roubo, porque sabemos que a ampulheta está a contar."

Ao nono romance histórico, Isabel Stilwell, 60 anos, escolheu, pela primeira vez, um homem como personagem principal. Mas, ainda assim, continuam a ser as mulheres as suas grandes influenciadoras. Em "D. Manuel I — Duas Irmãs para Um Rei" (Planeta, 640 págs., €24,90), o "Venturoso" é retratado pela voz das duas irmãs com quem se casou, pela mãe e pela ama de leite. O livro também esteve de quarentena até sair para os escaparates e, por isso, nesta conversa com a VISÃO, não podíamos deixar de falar sobre a pandemia e, claro, sobre o jornalismo, profissão em que Isabel começou, aos 21 anos.

Porque escolheu D. Manuel I como a sua primeira personagem principal masculina?
Também pelas mulheres dele [risos]. É uma personagem muito mais complexa do que se pensa. Aprendemos na escola que ele é o afortunado que herda todo o trabalho feito por D. João II e que o continua. O que já não seria mau, porque há pessoas que herdam e não continuam.

Conta a história de um homem através de duas mulheres?
Através de duas mulheres irmãs, mas também pela voz da mãe que era extraordinária. Uma viúva que ficou a tomar conta dos filhos e do negócio e que, diplomaticamente, tinha uma influência enorme. Também conto a história através da ama de leite, que tem esta história surpreendente de ser amante de um bispo e de ter dois filhos com ele. Além disso, tem uma irmã rainha... Em parte, D. Manuel I é posto no trono pelas mulheres.

Durante a investigação, o que lhe agradou mais, e o que lhe agradou menos, em D. Manuel I?
D. Manuel I chega ao poder com 26 anos; viu matar o cunhado e o irmão e, a partir daí, ficou na corte do rei e a ser vigiado por ele. A minha interpretação é que ele era perito na arte da dissimulação, de ser humilde e de não levantar ondas. No momento em que sobe ao trono, começa logo a concretizar coisas. Antes era um low profile, mas, quando assume o poder, está ali no seu puro narcisismo.

Teve um reinado muito rico, com a descoberta do Brasil e do caminho marítimo para a Índia...
Tinha um sonho messiânico. As pessoas acham que fizemos a expansão marítima para descobrirmos mais mundos, mas não. A ideia de D. Manuel I era só uma: encontrar maneira de reconquistar Jerusalém, de dar cabo dos mouros e de ser o imperador que uniria o mundo sob a mesma fé. Também foi nesta altura que houve a perseguição aos judeus.

Como olha para este facto?
Acho que somos um bocadinho provincianos a analisar a nossa História, e às vezes até os historiadores o fazem. Queremos atribuir a culpa da expulsão dos mouros e dos judeus, bem como o batizado forçado dos judeus às condições que Isabel impôs a D. Manuel para se casar com ele. Isto é subestimar este rei, tirar-lhe o ónus, e os portugueses por terem feito ainda pior do que os castelhanos. Em Espanha, havia a Inquisição; aqui não, nós acolhíamos os que fugiam de lá. Há uma nova tese de uma historiadora, publicada em Cambridge, em que se diz que Isabel pediu para expulsar os hereges que fugiram de Castela e que se refugiaram em Portugal, mas D. Manuel decidiu ser mais papista do que o Papa.

Porque diz isso?
Expulsou os mouros e os judeus e fez uma coisa muito pior — e que é a nossa vergonha. A certa altura, chamou os judeus a Lisboa, encerrou-os num campo do palácio, sem água nem comida, e foi oferecendo-lhes o batismo. Isto para um judeu é o mais cruel dos fins. Acabou por batizá-los à força e houve pais que, no caminho entre o palácio e a igreja, mataram os filhos e se suicidaram.

Desde que começou a trabalhar como jornalista, muita coisa mudou. Que alterações, negativas e positivas, observa?
As negativas são fáceis: hoje é pedido que se façam coisas piores do que antes, no sentido de se ter menos recursos, tempo, ajuda e multidisciplinaridade. As positivas: senti que trabalhar com pessoas mais novas é muito rejuvenescedor; obriga-nos a não cristalizar na maneira de ver o mundo e a estar mais atualizados... Além disso, neste universo digital, a rapidez e a eficácia com que conseguimos trabalhar são muito boas.

E chegam a mais pessoas...
Sim, chegamos às pessoas, apesar dos trogloditas que andam nas redes sociais e que fazem um mal terrível. A autocensura é a pior das censuras. Tive várias experiências más, fui atacada e insultada nas redes sociais e, quando, em casa, ao jantar, dizia que ia escrever sobre determinada pessoa, os meus três filhos respondiam-me: "Mãe, não se meta, não escreva." Acho que há muita gente a fazer autocensura, temos comentadores a uma só voz, um jornalismo mais uníssono e com medo.

As redes sociais puseram os jornalistas à prova ou estes deixaram-se levar por essas mesmas redes?
Fico desesperada quando vejo um noticiário na televisão a começar com uma notícia que apareceu no Facebook. Embora tenha de reconhecer que, desde que os presidentes passaram a usar o Twitter, os jornalistas têm, obviamente, de ler essas publicações. Apesar de tudo, penso que uma coisa é ter uma dica, outra é fazer coisas baseadas nas redes.

Como olha para o jornalismo de hoje?
Durante anos disse isto, mas acho que as pessoas não percebiam: quanto mais publicidade tivermos, quanto mais formos saudáveis economicamente, mais livres seremos. Quando os leitores se queixavam de que havia muita publicidade, eu respondia que era por causa disso que éramos livres. Ainda não encontrámos o modelo de sustentabilidade económica que nos permita ter de novo essa liberdade. Há projetos que lutam heroicamente por manter o bom jornalismo, apesar de terem a corda na garganta.

E a qualidade do jornalismo que se pratica?
Há, de facto, alguns entrevistadores e alguns repórteres a quem continuo a tirar o chapéu e que, até, serão menos subservientes do que no meu tempo de trabalho em revistas e jornais. O resto... há momentos em que tenho vontade de rasgar a Carteira Profissional de Jornalista ao aperceber-me de que quem está a fazer jornalismo não segue, sequer, o Código Deontológico. Detesto o tipo de jornalismo justiceiro que condena pessoas na primeira página. E não consigo perceber as fugas de informação: ou é segredo de Justiça ou não é. Isto é chocante, sobretudo numa área do jornalismo que eu sigo muito e que está relacionada com as crianças.

Refere-se à exposição de menores na Imprensa?
Fiquei em estado de choque quando vi as declarações do filho do Manuel Maria Carrilho [e da apresentadora Bárbara Guimarães] publicadas em revistas.

Também aconteceu recentemente com o irmão da menina que foi assassinada, a Valentina?
Os grandes arautos de defesa dos direitos das crianças usaram as declarações de um miúdo de 12 anos que ia pôr a mãe e o padrasto na cadeia.

As fake news são a pandemia da informação e não temos vacina para isso. Como tratamos esta doença?
O pior ainda é que alguns estudos revelam que desmentir de nada adianta, porque as pessoas leem o que querem ler. As investigações dizem que as pessoas se juntam a grupos, nas redes, que defendem aquilo que elas pensam e, portanto, tendem a reforçar a sua opinião.
Continuo a achar que o único caminho é a marca. A marca VISÃO é uma marca que define, a marca Público, o mesmo... As pessoas têm de aprender a fidelizar-se à marca.

O que, com esta pandemia, mudou na relação que tem com os seus oito netos?
Se me tivesse feito a pergunta antes de me ter reunido outra vez com os meus netos, eu diria que tinha mudado muita coisa, mas agora percebi que, quando há laços de intimidade criados, estes dois ou três meses não são nada. Recuperam-se à velocidade da luz. Ao entrarem na minha casa, uma foi a correr para o frigorífico buscar morangos para fazer um batido e a outra foi buscar o livro de que mais gosta.

E como foi durante o tempo que esteve sem os ver?
Eles são o meu melhor tratamento de antienvelhecimento. Obrigam-me a olhar outra vez para as coisas, levam-me a fazer o que jurei não fazer mais, como subir a uma árvore para ir buscar qualquer coisa que ficou presa.

Este corte abrupto foi pior para os avós ou para os netos?
Hoje em dia, os avós são geralmente mais velhos do que eu e pertencem, de facto, a um grupo de risco.
Preocupa-me os que viviam já muito em função dos netos e, mais do que isso, tinham um papel quase de pais, como irem buscá-los à escola, levá-los às atividades, dar-lhes o banho e a papa. A estes avós, foi-lhe roubada uma parte substancial dos seus objetivos de vida. Nós, os mais velhos, temos uma noção do tempo completamente diferente da dos mais novos. Não poder ver um neto é uma coisa irrepetível, são momentos que sabemos que não voltaremos a ter. Tirarem-nos esse tempo, o de criarmos memórias nos nossos netos, é uma sensação de vazio e de roubo, porque sabemos que a ampulheta está a contar.

Além de terem ficado sem o quotidiano.
Há um problema: alguns desses avós são mão de obra barata. Vemos famílias numerosas, tudo muito bonito, mas há ali uns avós, por detrás, que estão a fazer mais do que a dose que mereciam com a idade que têm.

A mensagem foi a de que os netos não deviam estar com os avós por causa do risco de contágio.
Sim, no fundo foi a mensagem das crianças-bomba. À medida que fomos sabendo que há tantos adultos assintomáticos, isso deixou de fazer sentido. Tanto se pode apanhar através da senhora do supermercado como através do neto. A partir daqui, já não faz muito sentido essa barreira.

Caso esta pandemia dure muito tempo, que tipo de crianças teremos?
Preocupa-me que a maioria dos miúdos não tenha saído à rua. Não é só mau por causa da obesidade ou da falta de exercício físico, mas pelo facto de eles, depois, não quererem ir ou de terem medo de o fazer. Isto tem de ser trabalhado depressa. Vi pais com receio do regresso às creches, mas eles deviam era ter mais medo de manter os filhos em casa.

Porquê?
Porque ficam com menos competências sociais. A escola é muito importante, e esta forma de escola à distância, por muito que os professores e pais estejam a fazer um esforço, é de grande stresse. Não sei onde o Governo tinha a cabeça quando decidiu que, se um dos membros do casal estivesse em teletrabalho, o outro não podia ter assistência à família. Das duas, uma: ou o Governo não sabe o que é teletrabalho; ou não sabe o que é ficar com duas, três ou quatro crianças em casa e, ao mesmo tempo, trabalhar. Sei que não há recursos para tudo, mas que haja pelo menos a humildade para se dizer que é impossível fazer as duas coisas.

O teletrabalho entrou de repente nas nossas vidas. O que veio alterar?
Por um lado, pode ser produtivo e dar a realização a quem o faz, mas para isso é preciso concentração e disponibilidade. Por outro, implica aquela sensação, que as mães já têm, de que não têm tempo para tudo e que ainda é mais agravada agora. Tenho visto muitos pais à beira da loucura, o que passa sob a forma de stresse para as crianças.

E como fica o ensino no meio disto tudo?
As desigualdades são muito grandes. Os meninos dos colégios privados estão a ter aulas hora a hora como se estivessem na escola, enquanto há outros que não têm nada. No próximo ano letivo, todos deviam recomeçar no mesmo ano, com exceção dos alunos do 12.º, que vão para a faculdade.