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ABR
7
 
 QUANDO O REI DE ESPANHA SE TORNOU REI DE PORTUGAL: QUEM FOI FILIPE I, O REI MALDITO, NO NOVO LIVRO DE ISABEL STILWELL
Leia aqui, em primeira mão, uma pré-publicação de dois capítulos de "Filipe I de Portugal, o rei maldito", o novo romance da escritora e jornalista Isabel Stilwell, que estará nas livrarias na próxima semana


Almada, 24 de junho de 1581

Lisboa era exatamente como a mãe lhe descrevera, pensou o rei, olhando para a cidade a partir das janelas das casas de João Lobo na margem sul, em Almada, onde o tinham alojado. A beleza da paisagem desde que embarcara em Vila Franca fora capaz de o distrair da notícia da fuga de António, e quando, por fim, vira o Castelo de São Jorge, onde a imperatriz tinha nascido, empinado no topo da colina, já nem se lembrava das joias roubadas. Não precisara que lhe dissessem o nome dos edifícios, apontou a Alberto e a Juan de Herrera a Sé, o paço dos duques de Bragança e, cá mais em baixo, a Alfândega e a Casa da Índia, reconhecendo as igrejas apenas pelas cúpulas que se destacavam das casas grandes e pequenas que cobriam a encosta e se estendiam a outros morros.

Mas foi para o majestoso Mosteiro de São Vicente, o maior de todos os edifícios desta cidade, que voltara a sua atenção – apontara ao seu arquiteto a obra de D. Afonso Henriques: era ali que fazia sentido deixar a sua primeira marca. Pediu-lhe que mal pusesse pé em terra se metesse ao trabalho.

Mas agora, encostado à janela, observava, a luz da manhã, o Paço da Ribeira, junto do grande terreiro, uma pequena muralha a protegê-lo das ondas levantadas pelo vento. Sentia uma impaciência enorme em visitá-lo, em acompanhar as obras que mandara iniciar mal chegara a Badajoz, mas primeiro tinha de despachar toda a papelada, que encontrara já disposta numa secretária virada para a cidade – seria difícil não se distrair.

Sentado, reparou numa pequena pilha de cartas e abriu um sorriso: cinco cartas de Isabel Clara e Catalina Micaela, queridas filhas, nunca falhavam. Abriu as primeiras, divertindo-se com todas as novidades que lhe traziam, cheias de perguntas a que pediam resposta. Queriam saber tudo, queriam sentir-se aqui, com ele.

Pegou na pena e descreveu-lhes a viagem:

«Viemos até próximo de Lisboa, onde o rio abre muito até ter bem uma légua de largura, e onde estavam ancorados mais de cem navios de todas as formas e feitios, de todas as partes do mundo, alguns chegados pouco antes de nós.

Continuamos a descer o rio mais um pouco e fui reconhecendo todos os lugares com facilidade, estando muita gente nas margens. Depois atravessámo-lo para vir até aqui a Almada, onde tenho uma pousada muito bonita, embora pequena, que de todas as janelas tem vista sobre o rio, Lisboa e as naus e galeras que aqui aportam.

De um quarto, no piso de cima – de onde vos escrevo –, vejo bem Lisboa, porque aqui o rio tem pouco mais de meia légua, e de outra janela vê-se bem Belém e São Julião, e até muito mais abaixo, e todos os navios que entram e saem pela barra.»

Por fim, abriu a carta mais recente, de Isabel Clara, que deixara para o fim, e leu-a com preocupação – apesar de estar prestes a fazer 15 anos, a filha mais velha continuava a não ser mulher. Não estranhou que lhe confessasse a sua angústia, desde a morte da mãe que era o seu confidente, e não havia assunto de que não falassem, mesmo a esta distancia, mesmo por escrito. Isabel Clara queixava-se de que, embora lhe faltasse o período, sangrava constantemente do nariz, apesar de todas as ervas medicinais que o pai a mandara aplicar. Pegou de novo na pena, procurando sossegá-la:

«Maior, o sangue das narinas creio que durará até ao que parece que tarda, e é bom sinal que assim seja.»

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E para não valorizar demais esta «falha» acrescentou um conselho para Catalina Micaela:

«E vós, a Menor, fazes muito bem em tomar caldos de raízes, como me contas, que espero te façam muito bem.»

Sentiu um peso no peito: velar pela saúde dos filhos de tão longe causava-lhe a maior angústia, mesmo sabendo que estavam bem entregues. Ainda na semana passada o pequeno Filipe estivera três dias com febre, a terçã, mas rezava para que Diego não a apanhasse. Mandara que separassem o príncipe do irmão mais novo porque, embora na maior parte dos casos tivesse uma evolução benigna, nunca se sabia como o organismo de cada um podia reagir, e o herdeiro do trono era frágil. Os seus rapazes eram frágeis e só lhe restavam dois…

As pulseiras a chocalhar de Magdalena Ruiz fizeram-no levantar os olhos da carta, estranhando que não entrasse a falar alto, como era seu costume.

– Vens murcha? – pergunto-lhe.

Magdalena cruzou os braços, as suas mãos desproporcionadas, bem a vista, e resmungou:

– Escreve às princesas? Então diga-lhes! Vá lá, diga-lhes lá o que me fez hoje! Conte-lhes que me ralhou como se fosse uma gaiata pequena.

E num tom dramático acrescentou:

– Humilhando-me em frente daquele marinheiro que podia ser, quem sabe, o homem da minha vida.

Filipe deu uma gargalhada:

– Queres mesmo que lhes conte as figuras que fizeste, levantando a saia e bailando que nem uma doida no convés da galera, perante aqueles homens todos?

Magdalena, amuada, reagiu:

– Não sou a louca do rei?

Filipe concordou, fingindo um ar grave:

– Não sei como te vamos aturar, agora que já cá não está o teu genro para te pôr na ordem.

O marido da única filha casada de Magdalena era um dos porteiros da câmara do rei, um homem encantador, com uma paciência de santo para a sogra, controlando-lhe os excessos.

Magdalena concordou:

– Ah, pois não sei o que farei sem a única pessoa que se importava comigo nesta casa! Mas aproveite para as avisar de que lhes leva uma arca cheia de presentes da minha parte, enquanto o querido paizinho não lhes manda nada!

O rei obedeceu-lhe, enquanto agradecia:

– Obrigado, Magdalena, por o fazeres por mim, mas agora vai curar a má disposição com alguém tão desatinado como tu. Mas nada de gritos, como ainda há pouco com os criados, porque preciso de sossego para os meus papéis.

Magdalena virou costas, mas Filipe ouviu-a comentar propositadamente alto:

– Vossa Majestade ainda morre enterrado nessa papelada e nem damos por nada.

O rei olhou para a pilha de documentos sobre a mesa e pensou que Magdalena estava coberta de razão. Selou a carta para as filhas. Teria de seguir logo pela manhã.

Lisboa, paço dos duques de Bragança,

26 de junho de 1581

A cidade está iluminada de cima a baixo. Nas muralhas do Castelo de São Jorge brilham tochas, e em cada janela de casa rica ou pobre há uma vela, para gozo de Sua Majestade, que se acolheu às casas de João Lobo, em Almada. São as ordens que recebemos, afixadas nos lugares públicos, em que constam igualmente as penas para quem desobedecer. E que vontade terão muitos lisboetas de recusar festa ao rei estrangeiro, por culpa de quem os seus pais, irmãos e filhos morreram na batalha de Alcântara, ao rei que mantém há meses aquartelados nesta cidade soldados alemães e castelhanos, ladrões e arruaceiros, apesar da mão férrea do pobre duque de Alba, que está tão doente que ainda nem foi apresentar cumprimentos ao rei.

À medida que o dia clareia, vejo os barcos balouçarem à nortada, que torna menos opressivo o calor, os galeões do marquês de Santa Cruz e muitos outros que, seguramente, se preparam para partir em direção aos Açores, onde António instalou o seu quartel-general, se não em pessoa, pelo menos através dos seus apoiantes. Dizem que a Terceira está por ele.

Ganhei a aposta com o meu marido, o Prior do Crato foi recebido de braços abertos por Catarina de Médicis e pelo seu filho, rei de França, que não lhe recusaram apoio, porque estão interessados, como os ingleses, no controlo daquelas ilhas, que oferecem abrigo das tempestades e uma oportunidade de reabastecimento de água aos barcos vindos do Brasil e das Américas.

Tive de proibir Teodósio e os seus acólitos Duarte e Alexandre de se irem oferecer a Filipe para embarcar com Santa Cruz. Quando me veio pedir autorização para tão disparatado plano, puxei Teodósio para mim – aos 13 anos está quase da minha altura! – e pus-lhe a mão na testa, fingindo ver-lhe a febre, e ameacei fechá-lo num hospício se continuasse a delirar. Esqueceu Alcácer Quibir, esqueceu as febres que trouxe de África e que ciclicamente o assolam, quer matar-me do coração? Que se ajoelhe em oração na capela e na companhia dos irmãos reze pela vitória de quem quiser, mas que não se atreva sequer a descer às docas, nem a pôr um pé num bote que seja. Ri-se na minha cara, abraça-me com força e desaparece.

Estou certa de que a esta hora já está à beira-rio.

Seguro o braço de uma das minhas damas mais novas e digo-lhe que vai sair comigo, num passeio para me distrair, para aliviar esta angústia que, quando me toma, impede-me de ficar quieta. Maria e Serafina fazem menção de nos acompanhar, mas recuso-lhes a companhia. Quero ir sozinha, digo, levo uma mulher apenas para salvar a minha reputação, vou rezar à capela onde fui batizada.

Deixam-me ir.

À porta do Paço da Ribeira escapo-me como uma criança ao cuidado da ama, sentindo um enorme prazer na transgressão. Quero ver que obras mandou fazer Filipe nesta casa que também é minha. Que devia ser só minha.

Entro por uma porta lateral, escondida pelas novas vigas que cheiram a madeira acabada de serrar, e subo as escadas ao primeiro andar, as memórias a regressarem em catadupa, neste espaço agora decorado de forma tão diferente daquela que conheci, sem música, sem festa, sem a voz da rainha D. Catalina a chamar por nós, para irmos desembrulhar mais uma maravilha para a sua coleção. Passo os dedos nos armários das raridades que colecionava com um afã de uma menina que passou a infância fechada numa torre em Tordesilhas, privada de tudo, e que vendo-se finalmente livre lutava para preencher aquele vazio que a demência de D. Juana e o abandono dos irmãos a votaram. A rainha Juana, avó de Filipe.

Ouvi passos e vozes e procurei onde me esconder. Que absurdo, Catarina de Portugal, alteza real, escondida atrás de um reposteiro como uma escrava apanhada a roubar. Mantenho-me firme, não saio de onde estou, e ousadamente, como se quisesse provocar os deuses, abro a porta de um dos armários e retiro da prateleira o leque redondo de marfim que em pequena adorava, sentindo o seu punho longo trabalhado – foi oferecido à rainha pelo embaixador do reino de Kotte, recordo, contente por ainda me lembrar do estranho nome.

E é então que oiço uma voz cheia de surpresa:

– Alteza?

Volto-me e quase deixo cair o que tenho nas mãos, inclino a cabeça numa vénia e respondo, procurando manter a voz inalterada:

– Vossa Majestade!