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ABR
30
 
 FILIPE I, O REI QUE PORTUGAL ESCOLHEU IGNORAR
Autora de vários romances históricos de grande sucesso, Isabel Stilwell debruça-se, no seu novo livro, sobre a figura de Filipe II de Espanha no momento em que se tornou também rei de Portugal. E ficou surpreendida.


Ele foi o homem mais poderoso do seu tempo: Filipe II de Espanha, filho de Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, e de Isabel de Portugal, senhor de extensos domínios no velho e novo mundo. Séculos fora, o seu fascínio, misto de maldição e mistério, continua a irradiar, inspirando aos historiadores do nosso tempo obras tão importantes como O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico no tempo de Filipe II, do francês Femand Braudel. Ela é Catarina, duquesa de Bragança, sua prima portuguesa, como ele candidata à coroa portuguesa após o desastre de Alcácer-Quibir. É em torno destas duas figuras, e do confronto inevitável que entre elas se estabelece, que a escritora Isabel Stilwell constrói o seu último livro, Filipe I de Portugal— O Rei Maldito (edição Planeta).

Autora de vários romances históricos que rapidamente se tomaram bestsellers, Isabeljá se debruçou sobre grandes figuras da História de Portugal como Filipa de Lencastre, Catarina de Bragança, a Rainha Dona Amélia ou Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, mas admite que escrever sobre Filipe, que, em 1581, juntou a coroa de Portugal à de Espanha, estabelecendo a monarquia dual, foi um desafio acrescido. Em primeiro lugar porque o desconhecimento em tomo do nosso monarca ainda é grande: "Quatrocentos anos depois, parece-me que já temos a maturidade suficiente para olhar para este rei com imparcialidade e muita curiosidade", diz-nos a autora. "Mas é uma personagem altamente complexa, com muitas contradições, o que torna ainda mais atraente descobri-lo e procurar compreendê-lo."

As leituras preconceituosas, nota ainda Isabel Stilwell, tendem a fazer esquecer as ligações de sangue e de cultura que Filipe, nascido em Valladolid em 1527, tinha como nosso país:"Ele éo neto mais velho de D. Manuel I, filho da filha mais velha do nosso rei, D. Isabel que, ao casar com Carlos V, tornando-se imperatriz, vai revelar toda a força da educação que recebeu do pai, toda a influência da sua mãe, filha dos reis Católicos." Culta, inteligente e com uma forte personalidade (assumiu várias vezes a regência durante as campanhas militares do marido), a imperatriz falava em Português como seu primogénita. Para além disso, o "príncipe cresceu rodeado de portugueses, o seu braço direito e melhor amigo desde a primeira infância foi Ruy Gomes da Silva, que chegou a Castela com dez anos. D. Filipe casa depois com uma infanta portuguesa, Maria Manuela, filha de D. João III, e a sua irmã mais nova, de quem é tão próximo, é Dona Joana, mãe de D. Sebastião." Por isso, quando entra no seu novo reino (a que, segundo Oliveira Martins, se referia como "o reino que herdei, conquistei e comprei"), o que Filipe faz é, segundo a autora, "uma viagem de reconhecimento, muito mais do que de conhecimento." E mesmo depois de regressara Castela, em 1583, Portugal manter-se-ia no teme das suas preocupações: "É daqui que parte a Invencível Armada, é como vice-reide Portugal que casa a sua filha mais velha."

O homem que Isabel Stilwell encontrou ao longo da sua investigação, é, pois, muito diferente da espécie de monstro obscurantista, dominado pelo fanatismo religioso, que a chamada lenda negra, forjada no Norte da Europa, consagrou: "As fake news não são de agora, nem tão pouco a difamação com intuitos de ganhar uma guerra. Os seus inimigos nos Países Baixos, alimentados pelas informações vendidas pelo seu antigo ministro António Pérez, puseram a circular a história de que assassinara o filha o príncipe D. Carlos, para casar com a sua noiva. A morte do primeiro filho de D. Filipe e da infanta portuguesa D. Maria Manuela é, de facto, trágica e acontece em circunstâncias dramáticas, mas o rei não o matou, embora confesse que a sua morte foi uma bênção de Deus, porque a loucura de que sofria não tinha cura. Provavelmente teria sido obrigado a prendê-lo para a vida, como acontecera com a sua avó, Juana, a louca."

Embora não se proponha branquear as decisões mais cruéis do monarca, que foram muitas, Isabel admite que a leitura das cartas que ele escreveu de Portugal às suas filhas mais velhas, e que Fernando Bouza publicou (Cartas para duas Infantas Meninas. Portugal na Correspondência de D. Filipe I para as suas Filhas, edição Dom Quixote) lhe deu "a oportunidade de ver um outro lado do seu caráter". Por outro lado, reforça, "quanto mais se investiga o seu contributo para a arquitetura, a arte, a botânica e a medicina mais cresce a admiração pelo que deixou? Ao contrário do que aconteceu com os seus sucessores, Filipe II e Filipe III de Portugal (a que também os espanhóis chamamos Áustrias menores, por oposição a Filipe I e Carlos V), este rei deixou em Portugal um legado ainda hoje bem visível: "O Mosteiro de São Vicente de Fora, numa colina de Lisboa, ali está como um dos marcos de D. Filipe I em Portugal, mas podemos encontrar as suas obras em muitos outros lugares -nos claustros e aqueduto del Tomar, nas fortalezas na nossa costa, nomeadamente a de São Filipe, em Setúbal, e no patrocínio da arte, das matemáticas e das ciências. Infelizmente muita coisa desapareceu com o terramoto de 1755 como, por exemplo, o magnífico torreão do paço da Ribeira."

O livro de Isabel Stilwell concentra-se, todavia, no tempo em que Filipe permaneceu em Portugal e na sua disputa com a duquesa de Bragança, também ela uma mulher de forte personalidade, que o livro caracteriza como culta, deteminacia e dotada de grande inteligência política: tal como o seu primo espanhol, era neta de D. Manuel I, pois era filha do infante D. Duarte e de D. Isabel de Bragança, filha do quarto duque. Em 1640, caberia ao neto de Catarina restaurar a independência, subindo ao trono como D. João IV e iniciando a dinastia de Bragança.

Estamos, pois, diante de duas personalidades fortes, compotencial para despertar a curiosidade dos vindouros. Isabel não tem dúvidas sobre a complexidade psicológica do rei: "Um dos seus maiores biógrafos, Geoffrey Parket' não hesita em "diagnosticá-lo" como um obsessivo-compulsivo, e eu subscrevo. O seu desejo de "acertar" era omnipresente. Filho mais velho da imperatriz, teve com a mãe uma relação muito próxima, de que o livro conta muitos detalhes, mas muito mais ambivalente com o pai, o imperador Carlos V- admirava-o tremendamente mas, também, sentia a sua constante ausência, o seu egocentrismo? A este quadro familiar somaram-se as circunstâncias políticas da 2.a metade do século XVI: "A luta contra os protestantes, a heresia, toma-o um rei implacável, e a desconfiança constante, que o pai tão insistentemente lhe recomendou, vai fechando-o sobre si próprio- é conhecido como "rei de gabinete". Há, no entanto, uma grande diferença entre a persona politica e o pai de familia:"Na intimidade, na relação com a família e com os seus mais próximos é um homem afável, sentimental e com sentido de humo?',diz a autora. E para quem tenha dúvidas basta ler as já referidas Cartas enviadas às princesas, suas filhas, onde manifesta grande atenção ao crescimento dos seus, desde o aparecimento dos primeiros dentes dos mais novos à menstruação das mais velhas, órfãs de mãe e prestes a entrarem na adolescência. Sem os preconceitos que durante demasiado tempo inquinaram a leitura desta figura e tempo históricos por historiadores e ficcionistas, Isabel Stilwell admite ter sucumbido um pouco ao "charme do homem mais poderoso do século XVI:"Confesso que acabei a minha investigação a gostar dele, desde, claro, que não me tomasse por inimiga?


O livro de Isabel Stilwell concentra-se no tempo em que Filipe permaneceu em Portugal e na sua disputa com a duquesa de Bragança.