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JUL
25
 
 ENTREVISTA A ISABEL STILWELL - WOOK
Desde que entrou no mundo dos romances históricos, Isabel Stilwell abraça o desafio constante de tornar a História viva e fascinante para os leitores de hoje. Em Leonor Teles, o seu mais recente romance, dá-nos a conhecer esta rainha retratada
à época como vilã, mas que foi muito mais complexa e interessante do que nos fizeram crer. A autora aceita de bom grado o nosso epíteto de “cronista do passado”, respeitando a linha entre o conhecimento fatual e a ficção. Revelando a pessoa por detrás da imagem pública de figuras como D. Filipa de Lencastre ou Isabel de Aragão à luz de novas fontes, sente que as conhece melhor. E convida cada leitor a reinterpretá-las à sua maneira, enquanto mergulha profundamente no contexto histórico de cada narrativa. E que prazer é entrar nestas histórias!


Escreve sobre temas muito diversos. O romance histórico é o género que mais a absorve e cativa?
Talvez aplique intuitivamente a tudo o que faço a mesma enorme curiosidade pelo ser humano e o desejo de desconstruir ideias feitas. E de o fazer com rigor e sentido de humor. Os romances históricos serão a oportunidade de aprofundar o meu conhecimento sobre o que faz de nós pessoas, aprendendo e confirmando como ao longo da História somos sempre os mesmos, embora manifestamos as nossas emoções de forma diferente, consoante o tempo e a cultura em que estamos inseridos.

Ao decidir escrever, sobretudo, sobre importantes figuras femininas da nossa História, pretendeu dar-lhes a voz e a visibilidade que não tinham tido ainda?
Não parti de nenhuma intenção de cruzada pelas mulheres. Sendo eu de uma família inglesa, falávamos da única princesa inglesa que tinha sido rainha de Portugal. Ao longo dos anos constatei que a maioria de nós não sabia mais do que aquilo que aprendeu a correr na escola sobre as nossas rainhas, algumas delas mulheres extraordinárias e completamente esquecidas. Era irresistível partir em busca de cada uma delas.

Retratar essas figuras femininas implica ter menos documentação a partir da qual trabalhar, originando romances mais ficcionados?
Depende muito de cada caso, porque quanto mais próximos chegamos no tempo, mais documentação se encontra. Mas quando recuamos no tempo, as mulheres só surgem nas crónicas na medida em que são mães, mulheres, ou filhas de homens importantes e, muitas vezes, não merecem mais do que uma linha. Apesar de tudo, quando se pesquisa, e se cruzam fontes, depressa se conclui que tudo o que podemos imaginar fica aquém do que aconteceu.

Ao escrever sobre a Ínclita Geração, colocou o foco em Isabel de Borgonha, e não nos seus irmãos, como tantos fizeram. O que descobriu, que mais a impressionou, quando investigava para este livro?
Quando comecei a “investigá-la”, descobri que é uma das mulheres mais poderosas do seu tempo. Há teses de doutoramento em França e historiadores americanos que escreveram sobre a Duquesa de Borgonha, mas eles tendem a centrar-se na sua governação já na Borgonha, a partir dos seus 33 anos. Há uma vida antes disso, que influencia aquilo que foi, nomeadamente o facto de ter ocupado o lugar deixado vago pela mãe ao lado de D. João I, durante muitos anos.

A sua decisão de escrever sobre Filipe I, um rei “mal visto”, prendeu-se com uma vontade de encontrar a pessoa por detrás do rei, a humanidade por detrás da política e do poder?
Não podia dizê-lo melhor. Sou bastante alérgica a “retratos” simplistas, porque as pessoas são todas muito mais complexas e interessantes do que aquilo que aparentam na cristalização que os manuais ou a ideologia do momento nos querem fazer pensar. Referimo-nos aos “Filipes”, como se os três fossem um único, “cancelámo-los”, e apagámos aquele período da História das nossas cabeças. Pareceu-me que já tinha passado tempo suficiente para olharmos para essa época sem (tantos) preconceitos. O rei Filipe I é mal visto, porque a História dos vencedores – a Dinastia de Bragança — o quis pintar assim. Além disso, as mais recentes biografias do rei e a descoberta das cartas que escreveu às filhas permitiram-nos conhecer outras facetas do rei.

Visitar o nosso património histórico é como espreitar para o passado. Estar nesses locais ajuda-a a imaginar as cenas da intimidade nas quais se movimentavam as figuras históricas que irão ganhar vida nos seus livros?
Preciso mesmo de visitar esses cenários para inspirar a minha escrita. Podem já só restar pedras, mas as pedras, quando as sabemos ouvir, também falam. Não vale a pena partir sem conhecer previamente a história do lugar, sem saber de quem é que vamos à procura, sob risco de não encontrarmos nada. Temos publicado roteiros literários associados a cada um dos livros para ajudar as pessoas a contextualizarem a visita, nomeadamente com as partes do livro que acontecem em cada sítio, para descobrirem os detalhes que lhes poderiam escapar.

Quais são as suas principais fontes de investigação para os romances históricos? E qual foi o documento a que teve mais dificuldade de aceder?
Leio tudo o que os historiadores escreveram sobre as personagens e o tempo sobre o qual vou escrever, mas também as fontes primárias, como as crónicas, os diários e as cartas, até porque aquilo que um romancista histórico procura nelas é diferente. Em termos de investigação pessoal, orgulho-me de ter encontrado as cartas, julgo que inéditas, de um embaixador inglês em Lisboa no tempo de D. Maria I, e que são muito importantes para perceber a saúde mental da rainha.

Depois de tanto investigar, consegue mais facilmente perceber o que de verdade há num documento histórico, ou o que serve «uma agenda»?
A experiência ajuda, e o que aprendi com as historiadoras que me acompanharam nos primeiros livros, também, mas aplico ao meu trabalho para os romances históricos os mesmos princípios que regem o jornalismo, a minha profissão: ouvir o máximo de fontes, cruzar testemunhos, confrontar pontos de vista, para chegar mais perto da verdade. No caso de Leonor Teles, este meu último livro, a “agenda” de Fernão Lopes é descarada, mas apesar disso a sua versão é repetida literalmente há séculos, e continua em muitos manuais da escola.

Os cronistas são uma fonte preciosa de relato dos acontecimentos passados. A Isabel Stilwell sente-se também como uma cronista desses tempos, mas em retrospetiva?
Costumo dizer que sou jornalista do passado, mas sim, cronista do passado, também gosto. Garanto, no entanto, que sou bem mais independente do que muitos deles, que escreviam o que lhes pagavam para escrever. Nesse sentido o tempo que passou concede-me uma liberdade que eles não tinham.

Já lhe aconteceu descobrir algo que tenha mudado completamente a ideia que tinha de alguma figura histórica?
Mudei completamente de opinião sobre Leonor Teles. Também eu aprendi na escola que era uma “aleivosa”, capaz de matar a irmã, de trair o marido, de nos “vender” a Castela, e só agora que a estudei mais a fundo é que percebi que grande parte do que se diz sobre ela não passa de fake news para difamá-la de forma a legitimar a Dinastia de Avis, que empregava o cronista. Mas ao longo destes 12 romances históricos estou sempre a encontrar pessoas que são muito mais complexas e interessantes do que aquilo que nos fizeram crer, a começar em D. Filipe I de Portugal e a acabar em D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques.

Para construir as personagens com que traz à vida figuras históricas – das principais às secundárias, incluindo crianças e todo o séquito que rodeava as figuras da nobreza – coloca-se na pele delas, construindo-as como pessoas tal como nós (todos sonhamos, desejamos, amamos)?
É quase isso, mas como quero fugir aos anacronismos tenho de mergulhar a fundo na época sobre a qual escrevo porque, se os sentimentos e as emoções são os mesmos, a forma como se manifestam é modelada obviamente pelo tempo em que viviam e pelos conhecimentos que tinham. Um cometa pode hoje ser um fenómeno explicado mas, no tempo em que escrevo, um presságio terrível de uma morte iminente.

O que é mais difícil na hora de começar a escrever um novo romance histórico?
Mal decido sobre quem vou escrever, a minha cabeça começa a fervilhar de ideias, noite e dia. Aquela pessoa, aquela família, passa a estar permanentemente comigo. Numa primeira fase leio e leio e aos poucos o “filme” torna-se mais claro, o passado torna-se quase presente. Enquanto isto, vou construindo uma grelha rigorosa de factos, de datas, de lugares, e a criar a história, a forma como se vai desenrolar, as personagens que vão ficar e as que vou ter de deixar cair... Há uma parte que se torna mais fácil com a experiência e outra, mais complicada, porque não me quero repetir, quero tentar coisas diferentes e tenho, sempre, medo de desiludir.

Filipa de Lencastre e Isabel de Borgonha fazem parte da Ínclita Geração, e a ambas dedicou um romance. Ao entrar na vida de uma figura, acaba por descobrir informação para muitas outras histórias… Como consegue decidir o que deve ficar num livro e o que vai separar para outro?
Pode acontecer de duas maneiras: uma, em que penso «Quero mais tarde voltar aqui»; e outra, que é muito posterior, em que de repente me lembro «É verdade, e o que terá acontecido à filha daquela personagem de que gostei tanto?». No caso de Isabel de Borgonha, foi a segunda, e só passados alguns anos.

No seu novo livro Leonor Teles, a narração alterna entre Aldonça de Vasconcelos, mãe da protagonista, e a tia desta, Guiomar Lopes Pacheco. Contar a história pelos “olhos” maternais destas mulheres permite uma visão mais íntima da menina e mulher que a rainha Leonor foi?
Acredito que sim. Sinto que tenho facilidade em entrar na cabeça das mães e, além disso, preciso muito desta outra voz para ir dando ao leitor um outro ponto de vista, por vezes, um contraditório do que se está a passar no primeiro plano. Estas duas mulheres mais experientes podem, além do mais, explicar ao leitor o que conduziu à situação presente, e completar a visão necessariamente infantil da minha personagem enquanto criança e adolescente.

A vida de Leonor Teles é marcada por tragédias passadas – o assassínio de Inês de Castro, prima do pai de Leonor – e futuras. Este livro demonstra, com paixão e sangue, como os laços entre as famílias da realeza podem ser fatais, de tão interligados e com tanto passado comum?
Completamente. Onde há poder, há intriga, paixão e sangue, e não precisamos de recuar ao século XIV para o confirmar! E quanto a famílias e nepotismo, também não faltam exemplos.

É curioso como nomeia de Dramatis personae a lista das figuras dos seus romances históricos. Imagina-as como atores num palco, do qual é a dramaturga e encenadora?
Curiosamente não. São para mim tão reais, tão de carne e osso e autónomas que sinto que não tenho mão nelas e fazem o que lhes dá na cabeça! O objetivo de as enumerar é ajudar o leitor a conhecê-las melhor e a encontrar a confirmação de que existiram mesmo, com a transparência de ressalvar onde começa a ficção. Posso dizer: sabe-se com toda a certeza que A e B trocaram cartas, estiveram juntos em circunstâncias estranhas, mas a relação amorosa entre eles é uma conclusão minha.

Depois de entrar nas vidas de alguns doss nossos antepassados, sente que os conhece?
Sinto que os conheço muito melhor do que osconhecia, e acredito que cheguei perto, mas sinto sempre a necessidade de dizer «a “minha” D. Teresa, a “minha” Inês de Castro, a “minha” Leonor Teles, o “meu” D. Manuel». Nunca conhecemos todas as facetas de uma pessoa e, para um mesmo facto ou acontecimento, há muitas versões diferentes. Desejo que o leitor, quando acaba de ler um dos meus livros, também se aproprie destas personagens de uma maneira que é só dele, as reinterprete e recrie à sua maneira. Não há outra forma de conhecermos os outros.

Tantas figuras marcaram a identidade de que somos feitos. O que diria às pessoas – crianças ou adultos – que acham que a História «não serve para nada»?
Dizia-lhes que se não soubermos de onde vimos, não percebemos o ponto onde estamos e torna-se muito mais difícil descobrir o caminho por onde devíamos ir, perdendo tempo a cometer os mesmos erros. E, depois, tentava a forma mais eficaz de todas: pedia-lhes que testassem o prazer que dá ler estas histórias, perceber estas intrigas, entrar num palácio e entender por que foi construído ali e não noutro sítio, como foi defendido um castelo e contra quem, e como, confrontado com uma perda ou um luto, pode encontrar consolo num poema escrito no século X onde, afinal, a dor e a tristeza se sentiam com a mesma força. Se há coisa que me faz feliz é a quantidade de leitores, novos e velhos, que me dizem que não gostavam de História, porque eram só datas e tratados, e agora descobriram que, afinal, não é uma “seca”.